O cenário obscuro, com apenas duas janelas e uma porta, remete ao interior do crânio humano. Ali, Hamm e Clov estão morrendo lentamente, esperando um fim que nunca chega. É daí que parte a peça “Fim de partida”, de Samuel Beckett, que volta ao cartaz na capital mineira neste sábado (11/1) e domingo, no Teatro Marília. A montagem da Trupe Garnizé integra a programação da 50ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança.
Pai e filho na vida real, Chico Dornellas e Victor Dhornelas são, respectivamente, Hamm e Clov. Os dois personagens estão confinados num bunker, num contexto de fim de mundo, e aproveitam o momento para discutir dramas pessoais, trazendo à tona memórias marcantes e, de algum modo, dolorosas.
Não existem laços consanguíneos entre eles, mas há uma relação quase familiar. Hamm criou Clov e, agora, já idoso, precisa dos cuidados do companheiro. Clov, por sua vez, sente a necessidade de ir embora, seguir a própria vida, deixando Hamm para trás. Mas ele reluta por causa do sentimento de gratidão que nutre para com o colega.
Adaptado e dirigido por Eid Ribeiro, o texto de Beckett foi escrito durante período conturbado na vida do dramaturgo irlandês. Era 1954, o mundo ainda vivia o pós-guerra, e Beckett vinha de um longo processo de crise criativa, desde a publicação do romance “O inominável” (1949).
Herói trágico
“Fim de partida” reflete esse estado catatônico de Beckett ao ressaltar os dramas de um tipo cômico que se torna cômico precisamente por sua atitude incongruente com o mundo exterior. Clov, principalmente, é quem assume essa função de herói trágico, que deixa o público desconfortável pela sua incongruência diante de uma situação tão séria.
A ficção ganha contornos documentais na vida dos dois protagonistas. Nos últimos anos, Chico Dornellas sofreu dois AVCs que comprometeram algumas habilidades cognitivas e a coordenação motora – ele não consegue movimentar a mão direita. Já Victor, que tem 28 anos e é quem mais acompanha o pai no dia a dia, enfrenta o mesmo dilema de Clov, ao contemplar uma mudança para o Rio de Janeiro ou São Paulo, em busca de melhores oportunidades na carreira.
“O processo emocional da peça é muito desgastante”, conta Victor. “Ali, eu estou, de fato, com meu pai e enfrento o mesmo dilema. Eu preciso ir embora, estou a fim de fazer outros trabalhos e de me mudar de cidade, mas eu não vou deixar meu pai aqui. Ele precisa de alguns cuidados”, afirma.
Victor não diz isso com rancor. O sentimento é de reconhecimento e gratidão, já que ele estreou nas artes cênicas aos 7 anos, acompanhando o pai e o irmão mais velho, Daniel Dornellas, hoje com 30, em espetáculos de palhaçaria que apresentavam nas ruas de Belo Horizonte. O trio formava a Trupe Garnizé.
Experiência em família
Por causa da debilidade física e cognitiva, em “Fim de partida” Chico fica quase o tempo todo sentado em uma cadeira de rodas, com um tablet à frente, acompanhando o roteiro. Suas falas, quase sempre, são lidas e, eventualmente, quando se perde ao ter que passar as páginas no aparelho digital, é Victor, sem sair do personagem Clov, que lhe ajuda com o aparato tecnológico.
Em março do ano passado, eles estrearam a peça no CCBB-BH. Ficaram em cartaz pouco mais de um mês e depois seguiram para temporadas de igual duração nas unidades do CCBB em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo.
“Foi uma experiência muito positiva”, diz Victor. “A recepção do público foi sensacional e, além disso, também tivemos a oportunidade de fazer coisas que nunca tínhamos feito ou que há muito tempo não fazíamos.”
“Por termos vivido de arte a vida inteira, não tínhamos muita condição financeira”, comenta o ator. “Então, essa temporada nos CCBBs permitiram ao meu irmão, que é contrarregra da peça, viajar de avião pela primeira vez. Eu fui à praia com eles pela primeira vez também e nós três ficamos morando juntos num Airbnb, como há muito tempo não fazíamos.”
Ao longo desse período, Victor passou a olhar o pai com outros olhos. “No início, existia um virtuosismo muito grande de minha parte. Como jovem ator, em um projeto grande, eu queria que tudo saísse perfeito. Depois acabei entendendo a relação simbiótica que existe no palco entre meu pai e eu, e vi a potência dele enquanto ator. Percebi que a peça é muito menos sobre mim – meu corpo e minha expressão vocal – e muito mais sobre essa relação de simbiose entre o real e o ficcional que se passa ali no palco”, afirma.
Passada a Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, pai e filho pretendem lançar um filme da peça e um curta-metragem sobre a recuperação de Chico Dornellas. As imagens do filme de “Fim de partida” já foram gravadas pelo cineasta João Dumans (“Arábia” e “As linhas da minha mão”) e o projeto está na fase de edição. Também estão nos planos dos dois voltar com as apresentações da Trupe Garnizé, que servirão de alívio cômico depois de uma temporada densa e intensa de Beckett.
“FIM DE PARTIDA”
De Samuel Beckett. Direção: Eid Ribeiro. Com Francisco Dornellas, Victor Dhornelas, João Santos e Marina Viana. Neste sábado (11/1), às 20h; e domingo, às 19h; no Teatro Marília (Av. Prof. Alfredo Balena, 586, Santa Efigênia). Ingressos: R$ 25, no site Vá Ao Teatro e nos postos do Sinparc.