'Nas décadas de 1970, 1980 e até 1990, quando colocava um produto mineiro na comida, ouvia: você acha que eu vim de casa para comer chuchu no seu restaurante?', relembra o chef Ivo Faria -  (crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press)

'Nas décadas de 1970, 1980 e até 1990, quando colocava um produto mineiro na comida, ouvia: você acha que eu vim de casa para comer chuchu no seu restaurante?', relembra o chef Ivo Faria

crédito: Túlio Santos/EM/D.A Press

 

Do Bairro Primeiro de Maio, em Belo Horizonte, para o mundo. Ivo Faria trilhou um caminho improvável para um jovem de periferia na década de 1960, época em que cozinhar era subemprego e chef ficava escondido na cozinha. Investiu na sua educação, aprendeu a falar francês e foi parar na Suíça, onde começou uma carreira que mudaria a história da cozinha mineira, usando produtos como chuchu e jiló.

 

 

Convidado desta semana do EM Minas, programa da TV Alterosa em parceria com o Jornal Estado de Minas e o Portal UAI, Ivo é chamado de “chefão” pelos colegas. Tanto por ter se tornado referência quanto pela disponibilidade em ensinar. Desde que fechou o restaurante Vecchio Sogno, o chef se dedica ao Instituto Ivo Faria, espaço que, além de aulas e eventos, tem um braço social através de projetos de formação de jovens em situação de vulnerabilidade social. Seu lema é compartilhar tudo o que aprendeu ao longo de 55 anos de carreira, desde combinar ingredientes até se impor diante das dificuldades.


Os chefs aqui em Minas só te chamam de chefão. Por quê?
Acho que a maioria deles trabalhou comigo como estagiário ou fizemos muitas coisas juntos. As pessoas mais jovens, que estavam entrando na profissão, me procuravam para pegar opinião, para saber detalhes sobre a profissão e eu sempre abri as portas para receber esse pessoal. Tenho um princípio: cresce quem ensina, cresce quem transfere conhecimento.

 


Obviamente, com 55 anos de carreira, você virou uma referência para essa turma.
Se analisarmos no Brasil, a cozinha despontou mesmo fortemente depois de 2000. Até 1995, quando inaugurei o Vecchio Sogno, Belo Horizonte ainda era tacanha. Tinha somente a escola do Senac, que estava meio parada, sem desenvolver grandes cursos. Então, você vê que o boom da gastronomia veio depois de 2000, é muito recente.


Você tem uma origem humilde, cresceu no Bairro Primeiro de Maio. Foi parar na cozinha por necessidade ou por desejo?
Fui parar na cozinha por acaso, por incrível que pareça. Meus colegas perto da minha casa começaram a fazer curso no Senac e começaram a gostar. A gente vivia uma vida muito simples e lá tinha piscina, alimentação e um campo de futebol de salão, onde os meninos muitas vezes chegavam pela primeira vez de chuteira para jogar. Isso foi por volta de 1968, quando, por acaso, Belo Horizonte teve a sorte de receber o (francês) Lucien Iltis como mestre, professor, chef para inaugurar a primeira escola de hotelaria do Brasil no Senac. Ele saiu do Copacabana Palace, foi para o Jockey Club, trabalhou com Juscelino Kubitschek e depois veio inaugurar essa escola de cozinha em Belo Horizonte. Falava mal português e foi meu mestre por acaso. Eu queria ser garçom, não queria ser cozinheiro.

 

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Como foi essa virada?
Acontecia uma coisa muito estranha no Senac. Eles reuniam todos os alunos numa sala, iam chamando nome por nome, as pessoas ficavam de pé e depois saía a lista. Morenos e negros iam para a cozinha. Brancos, bonitos, salão. Depois fui instrutor e todos os pedidos de emprego que a gente recebia eram: quero um garçom, mas de boa aparência. Muitas vezes, não adiantava mandar um garçom mais ou menos que ele era recusado nos restaurantes. Então, essa seleção já começava dentro do Senac. Fui para a cozinha, quis desistir, não desisti porque a minha mãe não deixou e também tinha uma coisa boa: comer bem, nadar, jogar bola, conhecer o Centro da cidade, que não conhecia direito. Tinha 14 anos na época. O Senac dava bolsa para os alunos estudarem, porque ninguém se interessava em fazer curso de cozinha, tampouco de garçom. Isso funcionava para fomentar o mercado. Era um curso de três anos, como se fazia na Europa, com português, história, francês, então dava uma noção boa para os alunos.


Nessa turma tem alguém que despontou como você?
Cozinheiro é igual jogador de futebol. Poucos despontam porque, muitas vezes, não têm tempo, não persistem em enfrentar as barreiras que a cozinha cria, que é abandonar o momento de lazer para se dedicar ao trabalho. Nem todos estão dispostos a passar por isso, principalmente no mundo de hoje. Naquela época, cozinha não tinha glamour nenhum. Se eu falasse que era cozinheiro numa danceteria, era motivo de chacota. Falava que trabalhava em escritório. Hoje você fala que é chef e é tratado com respeito.

 

O que você acha que causou essa mudança?
Grandes redes de hotéis trouxeram para o Brasil, na década de 1980, grandes chefs de cozinha da França, Suíça e de outros países. Tinha um chef alemão no Othon Palace, um francês no Del Rey e muitas vezes até os gerentes de alimentação eram estrangeiros. Esses grandes chefs foram as pessoas que fizeram a cozinha sair do subemprego para ser um emprego digno.

 


Sei que você já encantou estrangeiros e brasileiros com pratos feitos com chuchu, ingrediente que muita gente acha sem graça e sem gosto. Qual é a mágica?
Por incrível que pareça, até os chefs daqui de Belo Horizonte me pedem para fazer aquele chuchu. Esse chuchu eu fiz uma vez, vários chefs de cozinha franceses estavam presentes e comeram pratadas. É o ato de deixá-lo crocante e realmente ter um bom tempero. É o saber temperar e saber refogar. Me pediram para fazer o chuchu na França. Falaram que tinha lá, só que dei com os burros n’água, não tem nada a ver com o nosso. Parece uma pera dura, não tem aquela gosma, então não deu certo.


Você foi um dos primeiros a explorar os produtos mineiros.
Em 1980, quando surgiu a bolsa de estudo para a Suíça, o doutor Maurício, que era o presidente nacional do Senac, veio comer em Belo Horizonte e eu fiz um almoço para ele dentro da maior simplicidade possível, só a nossa comida, mas fiz vários pratos. Depois ele virou e falou o seguinte: Ivo, isso aqui serve reis e rainhas do mundo inteiro, porque foi uma comida feita dentro da simplicidade, mas com técnica, sabor e misturando produtos de uma forma bem sábia. Isso agradou de uma forma muito grande, tanto é que, quando passei no teste, ele falou assim: fiz questão de vir a Belo Horizonte para te cumprimentar porque você que vai para a Suíça.

Qual é o seu prato mais famoso?
Não tem, não. Acho que é o entusiasmo de cada dia, de cada cardápio que você faz, de uma descoberta. Mas sempre volto a algumas coisas, que estão na minha memória gustativa, na minha infância, que o mineiro gosta. Não tem jeito de fugir disso, porque sempre vai ter o frango com quiabo, uma carne moída com angu, quiabo com jiló, um chuchu, isso faz parte da nossa vida.

 


Fala um pouco do Vecchio Sogno, que foi o templo da gastronomia em Belo Horizonte por anos e anos.
O Vecchio Sogno foi uma casa que surgiu de uma conversa com o Memmo (Biadi) do Dona Derna, que era um amigão. Durante anos, nós falamos em ter algo juntos. Até que um dia surgiu a oportunidade de fazer um restaurante na Assembleia (Legislativa de Minas Gerais). O Memmo tinha o Dona Derna, acabou que eu assumi o Vecchio Sogno como um todo e aquilo ali virou um restaurante que tinha muito a minha marca, mas tinha muita participação dele. Foi um restaurante que marcou época em Belo Horizonte. Todo mundo pensa, mas o meu maior público não era político. Podia contar com os deputados 90 dias por ano, então nós procuramos turistas, empresas e famílias. Senão estaria quebrado.


Depois que você fechou o Vecchio Sogno, não quis abrir outro restaurante. Por quê?
Olha, o Vecchio Sogno não é uma casa para amador. Era uma casa com 60 funcionários, nós tínhamos três maîtres, dois sommeliers, dois manobristas, 14 garçons, 21 pessoas na cozinha e, além disso, escritório, compradores, motorista, então era uma casa grande. Se hoje eu tivesse que abrir um Vecchio Sogno, seria uma coisa mais compacta, nunca com um porte daquele. Mas foi uma casa que me deu muita satisfação, não só para mim, virou uma referência de aprendizado para outras pessoas. Muitas pessoas frequentaram o Vecchio Sogno como estagiários ou eu falava: vem aqui, sente a minha casa durante 30 dias, depois você monta a sua. Eu abria as portas para a pessoa ter experiência lá dentro para depois tomar o rumo dela. Muitas vezes, a pessoa queria entrar no curso de cozinha e ia lá conversar comigo.


Foi isso que acabou inspirando você a abrir o Instituto Ivo Faria?
O Instituto foi uma oportunidade de momento. Queria um local para dar aulas, onde pudesse fazer alguns jantares e que dali saíssem alguns projetos. Os projetos vão sair agora, aulas já estamos dando à noite, os eventos trabalhamos lá dentro, então é um local que está me dando muita felicidade, é um local que vai formar muita gente boa, porque os profissionais que estão lá comigo já são outros em relação àqueles que entraram. Quando você se propõe a montar um espaço, tem que pensar também em melhorar a vida do próximo. Tenho o maior orgulho de ver pessoas que passaram na minha mão e que estão muito bem. Chegaram na maior simplicidade possível e hoje estão em outro patamar de vida.

 


Essa abertura para ensinar tem a ver com a sua origem humilde?
Acho que sim, vem lá de trás. Muita gente me ajudou muito, mas ajuda é uma coisa muito complicada. Nem todo mundo quer ser ajudado. Isso você só vai descobrir 10 anos depois, quando olha para trás e vê a oportunidade que desperdiçou. Você tem que valorizar essa ajuda na hora certa. Eu com 17 anos dava aula no Senac. Com 19, era chef do primeiro restaurante francês de Belo Horizonte. Aos 22, resolvi sair desse restaurante, chega, vou tomar uma atitude, preciso aprender a falar francês. Minha meta era falar francês, mas não conseguia. Aí eu falei assim: quer saber, tenho só o quarto ano de grupo, deixa eu estudar. Fiz supletivo, curso técnico de nutrição e dietética, aprendi a falar francês, fui parar na Suíça. Isso quer dizer o quê: dedicação. Numa época em que a profissão não oferecia muito, era subemprego ainda, isso era na década de 1970. As cozinhas eram quentes, malfeitas, horrorosas. Por isso, toda vez em que eu fiz uma cozinha, fiz bem-feita, porque sabia que ia trabalhar lá dentro. Tinha uma visão fora da época.


E essa ascensão do profissional cozinheiro para o profissional chef, você vê isso com bons olhos?
Muitas vezes, a pessoa faz questão de escrever chef fulano de tal no peito e não conhece nada, não tem técnica, não tem experiência. Mas já está se apresentando como chef, até no período em que está fazendo o curso de gastronomia. Não preciso colocar que sou chef no peito. Você é um líder nato, já nasce líder, cresce líder da garotada desde pequeno. O líder deve aproveitar o talento dele para se preparar para o dia a dia estudando, aperfeiçoando, buscando conhecimento, respeitando o próximo, respeitando os produtos com que trabalha, respeitando o seu fornecedor, respeitando o seu cliente. Quando você respeita o seu cliente, não faz qualquer coisa para colocar na mesa dele. Lembro que, no ano de 1972, quando abriu o São Jorge, que era do Amílcar Martins, um restaurante de alto luxo, parava até Ferrari lá na porta, eu tentava ir ao salão para conversar com os clientes, mas não tinha jeito, eles não olhavam na minha cara. Cozinheiro não tinha prestígio, mas eu falei: não vou desistir, não, vou pôr a minha cara no salão. Quem mandava no restaurante era o maître. Falei: no restaurante onde trabalho quem manda é o chef. Tinha 19 anos. Quem dava as regras era eu, eu que determinava o que fazer. Essa garotada que está aí já aprendeu isso, porque hoje é muito mais fácil. Hoje todo mundo fala de gastronomia. Na década de 1970, as pessoas não iam à Europa pensando em gastronomia, iam visitar a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo. Poucos pensavam em comer, em tomar aquele vinho. Hoje não. Eu tinha clientes que vinham do Rio de Janeiro de avião, desciam no aeroporto da Pampulha, comiam e voltavam.

 

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Como você vê a gastronomia mineira hoje?
A gastronomia mineira tem um espaço muito grande e está a cada dia crescendo mais. Nas décadas de 1970, 1980 e até 1990, quando colocava um produto mineiro na comida, ouvia: você acha que eu vim de casa para comer chuchu no seu restaurante? Até aluno, quando eu ia dar aula e cismava de fazer pratos só com produtos mineiros, ficava bravo: isso como em casa. Isso era uma barreira. Aí o que eu fazia no Vecchio Sogno: uma mistura de produtos mineiros com a comida italiana. Maria gondó, eu achava dois, três maços no Mercado Central e não conseguia mais. De repente, ensinava a fazer na aula, os alunos iam ao mercado e não achavam, aí começaram a vender 10 maços. Aí eu ensinava de novo e apareciam 20 maços. Chef de cozinha cria demanda por um produto. Umbigo de bananeira não tinha. Ensinei tanto a fazer que hoje você consegue, basta encomendar. Então, a demanda quem cria é o chef. Agora, introduzir isso no restaurante naquela época era muito mais difícil. Hoje valorizamos os produtos brasileiros e mineiros de uma forma muito linda. Graças a Deus temos bons chefs em Belo Horizonte, em Minas Gerais fazendo um trabalho maravilhoso, um trabalho de ponta muito bacana e eu respeito muito o trabalho deles, acho muito legal.