O entrevistado do caderno Direito & Justiça Minas foi funcionário do Tribunal Regional do Trabalho, aprovado em concurso para promotor de justiça, além de juiz federal, ministro do Tribunal Federal de Recursos, do Tribunal Superior Eleitoral, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. Neste caso, por cerca de 16 anos, tendo chegado a presidente da Suprema Corte. A justiça e o direito são bandeiras deste mineiro de Entre Rios de Minas, que, após percorrer todos os níveis do judiciário brasileiro, advoga até a presente data. Austero e discreto, ele prega que juiz não deve falar fora dos autos. Seu coração nunca deixou Minas Gerais, seu domicílio eleitoral. Ele foi membro do Conselho Consultivo dos Diários Associados, com quem tem relação histórica. Aqui Carlos Mário da Silva Velloso dá uma aula de civilidade e democracia. E orienta estudantes de direito e advogados em início de carreira pública ou privada.
O Sr. nasceu em Entre Rios de Minas, em 1936, e teve como primeira graduação a Filosofia. Quais os costumes da infância no interior de Minas e que ensinamentos da Filosofia mais contribuíram para a formação de sua personalidade?
Nasci em Entre Rios de Minas, no ano de 1936. Fiz o curso ginasial no ginásio Santo Antônio de São João del Rei. Em 1954, mudei-me para Belo Horizonte, a fim de continuar os meus estudos. Fiz o curso clássico no Colégio Estadual de Minas Gerais. Em 1958, matriculei-me no curso de Filosofia da UFMG, após aprovação no vestibular. Não cheguei a me graduar em Filosofia. Atendendo ao apelo vocacional, fui estudar direito. O estudo da Filosofia me foi e me tem sido de grande utilidade. Sempre me identifiquei com a Filosofia do Direito, principalmente a partir das aulas com o professor Edgar de Godoi da Mata Machado, no curso de doutorado da Faculdade de Direito da UFMG, a partir de 1964. Edgar Mata Machado formou gerações de mestres.
Após cursar Filosofia, o Sr. optou pela área jurídica, tendo cursado o primeiro ano de Direito na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis, mas terminou o curso na Faculdade de Direito da UFMG. Por que esse retorno a Minas? Pode-se dizer que mesmo tendo residido ao longo de sua vida, vários anos fora do estado, Minas nunca saiu do Sr.?
Na verdade eu nunca saí de Minas. Nomeado, em dezembro de 1977, para o cargo de ministro do antigo Tribunal Federal de Recursos, passei a residir com a minha família, a partir de 1978, em Brasília, mas sempre mantive residência em Belo Horizonte, meu domicílio eleitoral. Sim, cursei o primeiro ano de direito na Universidade Católica de Petrópolis. Transferi-me, no segundo ano, para a Faculdade de Direito da UFMG, porque fizera concurso público para o TRT de Minas, em 1959. Aprovado, fui nomeado e empossado em 13 de fevereiro de 1960. Por isso, o meu retorno à UFMG.
Em 1967, com 29 anos, o Sr. foi nomeado juiz federal em MG, cargo que ocupou por uma década, até ser alçado a ministro do então Tribunal Federal de Recursos, cargo que exerceu de 1977 a 1989. Como foi exercer a magistratura nesse momento de transição do Brasil para a democracia? O Sr. foi magistrado, por mais de 20 anos antes da Constituição de 1988. Ela trouxe muitos avanços? Quais? E algo que deveria ser revisto?
Sim, fui nomeado juiz federal em Minas, em 1967, com a idade mínima na época, para o cargo. Formado em 1963, prestei concurso, em 1964, para o cargo de promotor de justiça. Aprovado, fui nomeado promotor de Rio Piracicaba. Não pude aceitar o cargo, porque já casado e pai de dois filhos, seria difícil mudar-me de BH. Tinha já pequena advocacia e era servidor público. Em 1965/1966, prestei concurso para juiz seccional e juiz de direito da Justiça de Minas Gerais, aprovado em 2º lugar no primeiro e em 5º lugar no segundo. Em 1967, como foi dito, fui nomeado juiz federal em Minas. Fui, na condição de juiz federal, juiz do TRE/MG, em 1969-1971 e 1973-1975. Os juízes eram muito respeitados. Jamais, civil ou militar, pretendeu exercer qualquer influência nas nossas decisões, e nem admitiríamos. As autoridades civis e militares respeitavam e reverenciavam os juízes, muito mais que hoje. As nossas decisões tinham repercussão na imprensa. Todavia, nenhum juiz falava fora dos autos. A Constituição de 1988 trouxe avanços, sim. Fortaleceu sobremaneira o Poder Judiciário e o Ministério Público brasileiro. Merecem estudos que não caberiam numa entrevista, a Constituição democrática de 1988, a mais democrática das Constituições que tivemos. Já escrevi trabalhos a respeito, e no próximo dia 1 de outubro, na Semana da Constituição, vou proferir palestra para os juízes federais, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, sobre a Constituição de 1988, que completará 36 anos de sua promulgação, no dia 5 de outubro.
O Sr. foi ministro do Tribunal Superior Eleitoral entre 1983 e 1987. Em 1989 a 1990 foi ministro do STJ e, em 1990, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, cargo que exerceu por 16 anos, até 2006, tendo chegado a presidente da Suprema Corte de 1999 a 2001. Quais as principais decisões e posicionamentos mais impactaram naquele momento de Brasil, quando esteve no STF?
Como ministro do Tribunal Federal de Recursos, integrei o Tribunal Superior Eleitoral (1983-1985 e 1985-1987). No biênio 1985-1987, exerci as funções de corregedor-geral da Justiça Eleitoral. Em 1986/1987, implantou-se, na Justiça Eleitoral, o cadastro eletrônico dos eleitores, na presidência do ministro Néri da Silveira, que desenvolveu trabalho hercúleo. O TSE e os TREs recadastraram, em tempo recorde, mais de 100 milhões de eleitores, com a eliminação de milhões de eleitores fantasmas. Foi o início da informatização da Justiça Eleitoral, que culminou com a criação e a instituição, em 1995/1996, na minha presidência, da urna eletrônica. No Supremo, que ingressei em 13 de junho de 1990, servi por cerca de 16 anos. Foram inúmeros os recursos e as ações do controle concentrado de que participei. Os ministros do Supremo, dos anos 90 e da primeira década do ano 2000, foram os primeiros a interpretar a Constituição de 1988, fazendo-o com prudência e rigorosa observância dos freios e contrapesos, inclusive em relação a ele próprio, muito fortalecido pela nova Constituição. Em 1992, o Supremo Tribunal arbitrou o primeiro “impeachment” do presidente da República, o primeiro do mundo, presidido o senado pelo ministro Sidney Sanches, com rigorosa observância da Constituição. O Supremo saiu reverenciado pelo Congresso Nacional. Os acórdãos relativos ao “impeachment” ocorrido em 1992 constituem o precedente da matéria.
O Sr. é membro da Academia Mineira de Letras e, por mais de 20 anos, foi professor de Direito Constitucional e Tributário. Atualmente, uma das preocupações é a proliferação das faculdades de direito, que já são mais de 1.300 no país, o maior número entre todos os países capitalistas somados. Como filósofo, acadêmico e professor, qual conselho o Sr. dá para o estudante de direito e os jovens advogados em relação à formação jurídica?
Sim, fui professor de Ciência das Finanças e Direito Tributário na UNA, em Belo Horizonte, de Direito Constitucional na PUC de Minas, na UFMG e na Universidade de Brasília (UnB), por mais de 30 anos. A PUC/MG e a UnB concederam-me o título de professor emérito. Aposentei-me como professor titular da UnB. Integro a Academia Mineira de Letras, a Academia Brasileira de Letras Jurídicas, a Academia Brasileira de Direito Tributário e a Academia internacional de Direito e Economia, dentre outras. Sim, temos cerca de 1.300 Faculdades de Direito, número maior que de todas as faculdades de direito dos países do mundo ocidental, o que é um absurdo. Na maioria dessas escolas o professor finge que ensina e os alunos fingem que aprendem. O conselho que dou para os estudantes que querem estudar o direito é este: o curso de direito pode ser concluído sem dificuldade. Mas esse curso de nada vai valer, substancialmente. Procurem ingressar nas universidades públicas, nas universidades católicas, que têm tradição de bom ensino, e nas faculdades privadas que realmente ensinam. A advocacia é muito difícil de ser exercida e os concursos para as carreiras jurídicas são também difíceis. Estudem bastante, desde o início do curso, conversem com os professores, peçam indicações de livros. Enfim, estudem, com afinco, que terão sucesso.
O Judiciário, sobretudo o STF, é muito questionado sobre seu ativismo judicial. Esta sempre foi uma característica do STF ou atualmente há alguma razão para o aguçamento desse ativismo?
Fiz, há pouco, na Semana do Ministério Público de Minas Gerais, palestra sobre a “Constituição de 1988 que vi no Supremo Tribunal Federal, ela agora rumo aos seus 40 anos.” Ressaltei o testemunho do ministro Baleeiro, de que o Supremo “não tem sido apenas o passivo defensor da Constituição e da unidade do direito nacional. Sua ação silenciosa e serena também modelou esse Direito, sem fricções com o Congresso Nacional, que sempre o reverenciou. Os atritos com Floriano, com Prudente de Morais e com Hermes da Fonseca, noutros tempos e a posição altaneira do Ministro Ribeiro da Costa, mais recentemente, os embates em que se viu envolvida a Corte, em seguida 1964, suas posições liberais, em momento crítico, revelam um Tribunal destemido, cônscio de sua missão”. (“O STF esse outro desconhecido”). Em 1965, quando os tanques dirigiam-se a Goiás, a fim de fazer cumprir a intervenção federal e prender o governador Mauro Borges, um habeas corpus foi requerido. O ministro Gonçalves de Oliveira, numa tarde de sábado, despachou no cabeçalho da petição, “defiro a liminar. Oficie-se.” Apresentada a ordem ao presidente da República, o general Castelo Branco, a ordem foi cumprida e os tanques deram meia volta. Eu vi, então, o Supremo como “a voz viva da Constituição”, no dizer de Bryce, referindo-se à Corte Suprema americana, e assim sempre foi o Supremo Federal, que tem tradições centenárias de independência, coragem, imparcialidade, serenidade e de relevantes serviços prestados à nacionalidade. O que tem desgastado a nossa Corte Suprema são as decisões monocráticas. O Supremo sempre foi amado pelos brasileiros, que sempre o viram como o grande guardião dos direitos fundamentais e dos direitos da sociedade. Na pandemia da Covid, as decisões do Supremo, fazendo cumprir a Constituição, decidindo pela competência concorrente dos governadores e prefeitos para regular os serviços de saúde, disciplinando o isolamento social, foram muito importantes. A coragem e a resistência da Corte e do TSE às ameaças golpistas do presidente da República marcaram época e foram significativas em prol do Estado Democrático de Direito. O que tem desgastado o Supremo é o excesso de decisões monocráticas, os inquéritos à revelia do Ministério Público, o que já manifestei, de viva voz, a colegas do Supremo. Mas isto há de passar.
O excesso de judicialização no Brasil (hoje temos mais de 80 milhões de ações judiciais) é um problema? Tem solução?
Eu não vejo isto como problema. Ao contrário. Demonstra que o povo confia no Judiciário e o tem procurado para resolver os seus problemas. Pior seria se estivessem procurando fazer justiça por suas próprias mãos. O povo brasileiro é judiciarista, dizia um dos grandes juízes do Supremo, o ministro Rafael Mayer. Quantas vezes ouvimos – “vou até ao Supremo.” Se há muitos processos, os juízos devem ser ampliados, cargos de juízes de 2º grau e de tribunais superiores devem ser criados. O Conselho Nacional de Justiça deve estudar o problema com cientificidade. Essa responsabilidade é sua. Criar cargos e mais cargos de assessores é terceirizar a Jurisdição, solução simples, simplória, ofensiva à Constituição.
O Sr. já havia se aposentado durante o período da “Lava-jato” e suas repercussões. Qual sua posição sobre o chamado “lavajatismo” e sobre as suas consequências, inclusive para a economia? Houve excessos?
O Ministério Público, com a Polícia Federal e a Receita Federal enfrentaram e investigaram a maior corrupção na administração pública brasileira, resultando em condenações. Casos e mais casos, com confissões e delações de dirigentes de empresas estatais e de servidores públicos e autoridades, com devolução de dinheiro aos cofres públicos, isto é, às vítimas, foram noticiados pela imprensa. A sociedade não se esquece e não pode se esquecer de tudo isto. De modo que vejo na operação que acabou denominada de “Lava-jato”, porque iniciou-se num posto de combustíveis, em Brasília, algo muito positivo.
O Sr. tem uma relação histórica com os Diários Associados, que em 2024 completa 100 anos. Como vê essa nova fase do grupo, sua modernização e a implantação desse Caderno “DIREITO & JUSTIÇA Minas”? Qual a importância para o sistema de justiça mineiro?
Na solenidade, no Correio Braziliense, que marcou a restauração do “Caderno Direito e Justiça”, estive presente e parabenizei com satisfação os novos dirigentes do Condomínio e o advogado Décio Freire, eu que integrara, a convite de Álvaro Teixeira da Costa, sob a presidência do ministro Marcelo Pimentel, e na companhia do ministro Evandro Gueiros, o Conselho Consultivo dos Associados, e hoje é presidido pelo dinâmico e notável advogado Décio Freire. Carlos Mário Filho, João Carlos Velloso, meu neto e eu, aliás, somos advogados do Diário de Pernambuco, que se resume numa luta pela liberdade de imprensa. O caderno, que durante anos foi publicado com o Correio, prestou relevantes serviços ao Direito e à Justiça. Nesse caderno, os novos juristas brasilienses puderam publicar os seus trabalhos, os resumos de suas dissertações e de suas teses prestadas nos mestrados e doutorados da UnB, principalmente. Jovens e promissores advogados, promotores, procuradores e juízes tiveram vez no caderno “Direito e Justiça”, caderno que era frequentado por advogados, professores, desembargadores e ministros de tribunais superiores. O Estado de Minas, “o grande jornal dos mineiros”, ganha agora o “Caderno Direito e Justiça”, sob a responsabilidade do infatigável advogado Décio Freire, que comanda escritório de advocacia que se espraia Brasil afora. Isso será muito bom para os juristas mineiros e para o sistema judicial de Minas, estadual e da União. Novos juristas vão despontar, tenho certeza, no caderno, com proveito para o Direito e à Justiça. Parabéns para o Estado de Minas.