O entrevistado central do D&J Minas é o vice-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Maurício Godinho Delgado. Mineiro da Zona da Mata, ele foi advogado por 10 anos, antes de se tornar juiz do trabalho em 1989, tendo exercido a magistratura em Minas, onde viveu por 54 anos. Ministro do TST desde 2007, se destaca na mais alta corte trabalhista do país pela sua profundidade nos conhecimentos jurídicos. É professor universitário de Direito há 46 anos e autor de nada menos que 40 obras jurídicas. Nessa entrevista exclusiva, o ministro Maurício Godinho fala de sua trajetória desde sua infância até se tornar uma das maiores autoridades em Direito do Trabalho do país, aborda as reformas constitucionais e a evolução da Justiça do Trabalho face às necessidades de crescimento econômico do Brasil e orienta magistrados em início de carreira e todos os que militam em matéria trabalhista, aos quais alerta da importância do desenvolvimento de uma cultura multidisciplinar.
O Sr. nasceu em Lima Duarte, em 1953, e graduou-se em Direito em 1975 pela Universidade Federal de Juiz de Fora, após ser aprovado em 1º lugar no Vestibular Unificado, tornando-se Mestre em Ciência Política pela UFMG em 1980 e Doutor em Direito em 1994, também pela UFMG. Quais os ensinamentos que traz dos tempos de juventude no interior de Minas? O estudo sempre foi uma prioridade?
Minha infância e juventude foram vividas em diversas cidades da Zona da Mata de Minas Gerais, desde a cidade natal, Lima Duarte, passando, logo a seguir, por Senador Firmino, Miraí, Mar de Espanha e, finalmente, Juiz de Fora – cidade grande e bem desenvolvida que era (e continua a ser) o pólo líder de toda a Zona da Mata. Nesta última cidade, passei a morar desde os 13/14 anos até os 22 anos. Meu pai, Mauricio de Paula Delgado, foi Juiz de Direito em tais cidades, desde Senador Firmino, razão pela qual a família residiu em todas elas. Minha infância e adolescência foi bastante agradável, misturando a convivência com os inúmeros irmãos e amigos da época (éramos 11 irmãos na família), a prática normal de muitos esportes e também a vida estudantil por distintas escolas fundamentais, secundárias e da fase do então chamado científico e clássico. Minha formação no campo intelectual se fez nessas escolas, em geral todas de muito boa qualidade, sendo a maioria de natureza pública, ao lado de um hábito crescente de leitura que se consolidou graças aos ensinamentos e estímulos adotados, no cotidiano familiar, por meus pais em casa. Na vida adulta, a formação pela Faculdade de Direito da UFMG foi muito relevante, por se tratar de um ensino de muito boa qualidade, que deixou sólidas raízes em toda a minha vida profissional. Embora tivesse profundo gosto pelos esportes, e os praticasse com intensidade na juventude, os fatos me demonstraram que eu não conseguiria ir muito longe nessa seara de atividades. Por essa razão, jamais deixei de focar com tenacidade também nos estudos, usualmente com um interesse e visão multidimensionais, fatores que contribuíram bastante para o exercício de minhas profissões nos anos seguintes. Nesse contexto, sempre busquei me estruturar em estudos harmônicos ao Direito, como de História, Filosofia, Ciência Política e Economia, caminho que se tornou muito significativo para o exercício de minhas atividades profissionais subsequentes, tanto no Direito em geral, como, em especial, no Magistério, na Magistratura e nas obras por mim publicadas nas décadas posteri
ores.
Em 1989, tornou-se Juiz do Trabalho e, em 2004, desembargador do TRT-3ª Região, tendo chegado a ministro do TST em 2007. São 35 anos de magistratura trabalhista. Por que a opção pelo Direito do Trabalho? Já era uma vocação em tempos estudantis?
Tão logo me graduei em Direito na UFJF, em dezembro de 1975, transferi a minha residência pessoal para Belo Horizonte, iniciando o mestrado em Ciência Política na UFMG imediatamente em janeiro de 1976. Na capital de Minas Gerais – onde vivi mais de três décadas -, exerci as funções profissionais de advogado, de professor e de autor de obras jurídicas por diversos anos. Iniciei, efetivamente, o magistério superior na UFMG em 1º de março de 1978, inicialmente na Ciência Política e, a partir do início dos anos 1990, na Faculdade de Direito da UFMG, passando, posteriormente, para a PUC-Minas em 2000, onde contribuí para a criação da área de concentração do mestrado em Direito do Trabalho. Exerci a advocacia por mais de 10 anos, com inscrição na OAB-MG, até minha posse como juiz do trabalho em novembro de 1989, também em Minas Gerais. Exerci também a função de assessoria jurídica em órgão público estadual por diversos anos, igualmente antes do ingresso na magistratura. Na magistratura, como exposto, iniciei em novembro de 1989 em Minas Gerais, onde permaneci até novembro de 2007, já como desembargador do TRT-MG, até que tomei posse como ministro do TST.
Conforme dito, sempre me preocupei em desenvolver uma formação multidisciplinar – característica que procuro preservar até os dias atuais -, razão pela qual, no campo jurídico, fiz questão de calibrar apreço e aprofundamento por distintas áreas temáticas, como Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito Civil, Filosofia do Direito e, até mesmo, Direito Comercial (hoje denominado Direito Empresarial), além de, é claro, o Direito do Trabalho. No tocante ao Direito do Trabalho, efetivamente tratava-se de área temática que dialogava com diversos de outros meus estudos e leituras, desde a juventude, como História, Filosofia, Economia e Ciência Política. Desse modo, sempre tive especial apreço por esse campo jurídico, o que me levou, tempos depois, já no final da década de 1980, vários anos após desenvolver o exercício da advocacia e do magistério, à escolha da magistratura trabalhista, ao invés da magistratura geral, com suas múltiplas especificidades, concentrada na Justiça Comum Estadual – que poderia ser também, registre-se, outro campo natural para as minhas escolhas profissionais.
É autor de cerca de 40 livros no campo do Direito e da Ciência Política, sendo a maioria sobre o Direito do Trabalho, tendo inclusive uma das mais atualizadas e completas obras, com diversas edições, intitulada “Curso de Direito do Trabalho”. Nesses 35 anos de vivência na magistratura, o Direito do Trabalho mudou muito? Pode-se dizer que houve uma evolução das normas trabalhistas?
Sem dúvida, o Direito do Trabalho evoluiu muito no Brasil, especialmente a contar da Constituição de 1988, que alargou e aperfeiçoou os seus institutos jurídicos, a par de ter aperfeiçoado diversas das instituições que atuam na correspondente seara jurídica. A Constituição da República, com as emendas subsequentes que recebeu, em particular a de n. 24, de 1999, e a de n. 45, de 2004, fortaleceu as ações coletivas – muito importantes em um universo tão amplo como o trabalhista e em um país continental como o Brasil. Também deu forças ao movimento social do sindicalismo brasileiro, afastando-o das amarras do Estado e lhe assegurando novos avanços. Mais ainda, reestruturou o Ministério Público do Trabalho, conferindo-lhe atribuições inovadoras nas questões trabalhistas. Se não bastasse, ampliou a Justiça do Trabalho, não só de maneira a atingir todos os rincões do território brasileiro como também na direção de ter a sua competência ampliada, entre outros aspectos. Em síntese, a nova Constituição corrigiu defeitos percebidos no sistema oriundo de décadas atrás, de modo a alcançar, no Brasil, um dos objetivos constitucionais de 1988, ou seja, uma sociedade mais livre, justa e igualitária. A Constituição de 1988 também deflagrou um processo muito relevante de inclusão e busca de maior igualdade em nossa sociedade, inclusive no mundo do trabalho, em favor das mulheres, da população negra, das pessoas com deficiência, entre outros grupos mais vulneráveis. No caso de crianças e adolescentes, esse processo direcionou-se à proibição do trabalho infantil e à proteção ao trabalho juvenil. Há que se registrar também o início do real combate ao trabalho degradante ou análogo à escravatura que, na fase anterior, era uma marca praticamente intocável na realidade brasileira. Tal deflagração de avanços começa em cinco de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, tendo continuidade nos anos seguintes mediante a aprovação de inúmeros diplomas normativos direcionados ao aperfeiçoamento das políticas públicas nessa direção mais civilizada. Some-se a isso o fato de a nova Constituição ter estimulado a ratificação de várias dezenas de diplomas internacionais de direitos humanos, inclusive trabalhistas, com importantes efeitos benéficos na busca da melhoria das condições de vida e de trabalho no Brasil. Esse roteiro impressionante de avanços sofreu um refluxo após 2015, com a retomada dos elevados índices de desemprego no mercado de trabalho brasileiro, a cessação de políticas públicas de incremento do valor trabalho na economia e na sociedade, a par do enfraquecimento substancial das instituições e dinâmicas do Direito Coletivo do Trabalho no país. Mas aí se trata de outro contexto, ocorrido mais de 27 anos depois do advento da Constituição de 1988 e sem conexão com os avanços constitucionais por ela deflagrados.
O Sr. tem mais de 46 anos de magistério universitário, sendo das grandes autoridades nacionais em Direito do Trabalho. Rotineiramente há aqueles que alegam que leis trabalhistas são um entrave para o desenvolvimento econômico e o progresso do país. Como o Sr. enxerga essa relação e em que ponto as Reformas Trabalhistas foram oportunas?
O sistema capitalista, para florescer, crescer e se ampliar, necessita de uma conjugação de fatores positivos, entre estes os humanos, os ambientais, os mercadológicos e os vinculados à tecnologia, a par de outros correlatos. De maneira geral, esses fatores necessitam atuar de maneira conjugada, sob pena de não produzirem bons resultados. Entre todos esses fatores, os humanos consistem naqueles que ostentam maior diversidade de influência, não podendo ser examinados apenas sob uma única perspectiva. Comece-se pelo mercado consumidor, sem o qual não há sequer sistema capitalista nem empresas, nem consumidores: ressalvadas as entidades que focam estritamente no mercado externo (e são poucas, de maneira geral, nas economias complexas), todas necessitam de um mercado interno robusto, amplo e crescente, o qual irá sustentar o bom crescimento das empresas e do conjunto do sistema capitalista, independentemente das conjunturas internacionais. Parte fundamental desse mercado interno é composto por pessoas humanas, sejam os indivíduos, sejam as famílias. Uma sociedade de pessoas pobres, vivendo em condições precárias, sem uma renda básica para atendimento às diversas necessidades pessoais e de suas famílias, seguramente não irá ensejar a estruturação de um saudável mercado interno para o sistema econômico nacional. O Direito do Trabalho consiste em uma política pública moderada, porém muito eficiente e ampla, de construção e manutenção de um mercado interno consumidor sólido e abrangente para o próprio sistema capitalista. Desemprego, más condições de trabalho, más condições de vida, rendas humanas muito baixas são problemas graves para o próprio desenvolvimento das empresas, como um todo, e do sistema capitalista em geral em determinado país. De outro lado, o Direito do Trabalho, com as suas exigências normativas, estimula o investimento empresarial em tecnologia, como fórmula de as empresas alcançarem maior produtividade do trabalho e incrementarem o seu avanço econômico e do próprio conjunto do sistema. Ou seja, este ramo jurídico atua como indutor da modernização tecnológica do capitalismo, ao passo que a precarização trabalhista atua como indutora do desinteresse econômico pelos avanços tecnológicos na economia e na sociedade. Se não bastasse, esse campo jurídico é que permite a organização de um sistema nacional de inclusão de pessoas humanas na economia e na sociedade, favorecendo uma maior harmonização do desenvolvimento no conjunto societário. Além disso, esse sistema nacional estruturado é um dos mais notáveis veículos a viabilizar o financiamento de diversas importantes políticas públicas, grandes partes delas direcionadas em favor das próprias entidades empresariais. A visão estritamente unilateral e isolada do papel do Direito do Trabalho não permite enxergar os diversos benefícios que ele traz para o conjunto da economia e da sociedade nacional. Do ponto de vista histórico e científico, afinal, as sociedades mais desenvolvidas de todo o planeta Terra, que foram (e continuam) estruturadas nos diversos países da Europa Ocidental capitalista, consistem exatamente naquelas que se desenvolveram, ao longo dos últimos 100/150 anos, convivendo com a floração e os avanços dos direitos individuais e sociais trabalhistas, dando origem a uma sociedade mais igualitária, harmônica e bem desenvolvida no sentido econômico, institucional, social e cultural.
Nesse ano de 2024 o Sr. assumiu a vice-presidência do Tribunal Superior do Trabalho, para o biênio 2024/2026. Conte para o leitor, quais são as atribuições da vice-presidência?
O TST consiste em um tribunal nacional para o qual se direcionam todos os recursos trabalhistas dos 24 tribunais regionais do trabalho do Brasil, que é um país de 210 milhões de habitantes, uma população economicamente ativa entre 100 a 110 milhões de pessoas, além de um território gigantesco, sendo o quinto maior país do mundo em extensão geográfica. Os Tribunais Regionais do Trabalho de grande porte do Brasil têm, de maneira geral, duas vice-presidências, uma judicial e uma administrativa, exatamente para melhor enfrentar a dimensão enorme dos desafios inerentes a tais órgãos. Já o TST, por ser um tribunal referenciado ao conjunto da República e a toda a Federação, ostenta apenas uma única vice-presidência, que congrega todas essas múltiplas funções em seu conjunto. As atribuições e competências são, portanto, inúmeras. Assim, cabe à vice-presidência do TST participar das sessões do Tribunal Pleno, da Seção de Dissídios Coletivos (dissídios coletivos de natureza econômica e de natureza jurídica, ações anulatórias de cláusulas de convenções e acordos coletivos e outros temas conexos), da Seção de Dissídios Individuais I (Direito Individual, Direito Coletivo e Direito Processual do Trabalho, entre outros temas conexos), da Seção de Dissídios Individuais II (ações rescisórias e mandados de segurança, entre outros temas), do Órgão Especial, das sessões do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, todos esses órgãos tendo competências temáticas e jurisdicionais bastante específicas e com muitos processos. Em alguns casos, irá exercer a presidência da sessão (como ocorre com a SDI-2) e, sempre o fará, nas substituições da presidência da Corte. Aliás, substituir a presidência, em suas ausências ou em sua representação, é outra importante atribuição da vice-presidência. Cabe também à vice-presidência prolatar decisões sobre a admissibilidade de recursos extraordinários do TST para o Supremo Tribunal Federal, inclusive os recursos contrários às decisões denegatórias de seguimento dos REs – fato que provoca uma média mensal de 4.500 decisões em agravos internos para o Órgão Especial do TST. Também cabe à vice-presidência do TST participar, em conjunto com a presidência da Corte, do processo de formulação de precedentes vinculantes no âmbito da Corte Superior do Trabalho, dinâmica que se estima crescer bastante durante a atual gestão presidencial em andamento. Seguindo adiante, igualmente é da competência da vice-presidência do TST realizar as tentativas conciliatórias em dissídios coletivos propostos originalmente perante a Corte Superior Trabalhista, usualmente envolvendo as maiores empresas estatais federais do país, a par de outras grandes empresas nacionais. Nesta linha, realiza também outras tentativas conciliatórias envolvendo processos sensíveis, seja por sua repercussão social relevante ou por outro fator apontado pelas partes interessadas. Em conexão a este aspecto, o CEJUSC (Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos) do TST atua em largo âmbito na dinâmica conciliatória, buscando acelerar o resultado final útil dos processos do trabalho que estejam em andamento no TST, estimulando as partes à realização de acordos nos referidos processos. Para tanto, uma equipe altamente especializada composta por juízes do trabalho e, sob sua coordenação e supervisão, composta também por servidores públicos, todos com curso formal em mediação e conciliação trabalhistas, atuam na realização das reuniões e audiências em busca de tais conciliações. Em harmonia a esta temática, a vice-presidência do TST também coordena a Comissão Nacional de Promoção de Conciliação (CONAPROC), envolvendo os 24 TRTs e seus respectivos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Soluções de Disputas e Centros Judiciários de Métodos Consensuais de Solução de Disputas, espalhados em todo o território nacional e sob regência regional do respectivo TRT. Nestas estruturas e dinâmicas institucionais focadas na conciliação processual, quer no TST, quer na titularidade da coordenação nacional dos diversos órgãos envolvidos, atua o ministro vice-presidente do TST, como coordenador do CEJUSC-TST e do CONAPROC, neste caso ao lado do vice-coordenador do CEJUSC-TST e do CONAPROC, cargos hoje exercidos pelo ministro Cláudio Mascarenhas Brandão. Note-se que há outras atribuições e competências administrativas internas ao TST que são direcionadas à vice-presidência da Corte Superior Trabalhista, embora sem o impacto externo das aqui explicitadas.
Como vice-presidente do TST quais são seus projetos e que legado pretende deixar?
Em todas essas inúmeras competências e atribuições acima especificadas, um dos mais importantes objetivos desta vice-presidência é buscar a concretização de um trabalho cuidadoso e técnico que seja apto a harmonizar a celeridade com a boa qualidade na efetivação dos procedimentos e de seus conteúdos, contribuindo, dessa maneira, para a mais rápida e efetiva realização da justiça. Harmonizar qualidade com celeridade sempre foi um dos objetivos centrais da atuação deste magistrado desde sua posse na Justiça do Trabalho em novembro de 1989. No tocante ao tema dos precedentes, contribuir para que a sua construção se faça na direção do aperfeiçoamento da matriz constitucional básica do Direito do Trabalho, individual e coletivo, e do Direito Processual do Trabalho, em suas diversas dimensões, além de propiciar a melhor harmonização das interpretações judiciais trabalhistas ao longo de todo o território brasileiro. No campo das conciliações pré-processuais ou processuais, permitir a aceleração das soluções dos conflitos trabalhistas, com resultados que se preservem justos, equânimes e mais céleres, de maneira a otimizar a atuação da Justiça do Trabalho em todo o país. Contribuir também com a sociedade brasileira no esclarecimento sobre o papel constitucional relevante do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho e do sistema trabalhista do país, em contexto histórico de enorme incompreensão existente sobre essa temática em alguns segmentos institucionais e societários de nossa pátria.