O Sr. é natural de Benjamin Constant, município de 45 mil habitantes do Amazonas, que fica a mais de mil quilômetros de Manaus, na divisa com o Peru. Conte-nos um pouco de sua infância e juventude até se formar em direito. O que traz de princípios daquela época que forjaram sua personalidade?


De fato, nasci numa região de tríplice fronteira: Brasil-Colômbia e Peru, onde lá passei a minha infância, época vital de formação da nossa personalidade e de lá trago comigo muitas histórias, lembranças e ensinamentos. Até meus cinco anos morávamos basicamente em barcos, pois meu pai viajava de Benjamin Constant até Manaus, outras vezes prosseguia até Belém e no retorno até Iquitos no Peru numa espécie de casa-comércio ambulante: ia parando nos portos das cidades ribeirinhas dos rios da Amazônia vendendo bebidas, enlatados e bolacha e comprava borracha, castanha e outros produtos. Fixamos residência em Benjamin Constant nos anos 70. Lá comecei os estudos até concluir o ensino primário. Lembro que certo dia chegou um promotor de justiça para acompanhar a apuração de um tumultuado fato em que o delegado de polícia da cidade havia matado um morador; parentes da vítima e populares estavam revoltadas querendo vingança; cuidadoso com a situação e até por reserva e segurança, o promotor Luís da Conceição (era um gaúcho que fez carreira no Ministério Público do Amazonas) chegou para minha mãe e disse “a senhora poderia fazer uma comida caseira para mim todos os dias no seu fogão”. Assim, minha mãe, que teve seu primeiro cliente um membro do Ministério Público, passou a ser dona de restaurante por muitos anos e meu pai estabeleceu um comércio na esquina da mesma rua. Era uma cidade pequena, longínqua em que não havia tevê nem automóveis nas ruas, e até hoje só se chega pelos rios. Lá cresci rodeado de parentes, amigos, conhecidos, com gente nas calçadas, praças e ruas, e o movimento das embarcações chegando ou saindo do porto. Fui fazer o ensino médio em Manaus. Com 17 anos entrei na Faculdade de Direito da Universidade Federal e fui aprovado, aos 18 anos, no concurso de Fiscal de Tributos do município de Manaus, dando continuidade assim a andanças da vida adulta.


Antes de se tornar juiz federal, o Sr. foi procurador da República no Espírito Santo, promotor de Justiça no Amazonas, fiscal de Tributos em Manaus. Esta diversidade de experiências que, certamente, enriquece o TRF-6., foi importante para sua formação. Em que pontos?


Saindo da faculdade, fui imediatamente aprovado no exame da ordem, mas fiz logo concurso para promotor de justiça e voltei como promotor para o interior do Amazonas para uma cidade bela e poética, chamada Silves, que se chegava na época só por rio, de barco. Lugar bucólico, lá comecei a dar aulas, incentivado por outro promotor (Sérgio Lauria, atualmente no MPF) que também era professor numa cidade vizinha. Foi maravilhoso lecionar à noite para aqueles jovens, gente que morava nas comunidades ribeirinhas e todo dia pegava canoa ou barco por horas para ir até o único colégio, sede do município. Promovido para a promotoria de Manaus, resolvi me aventurar na área federal. Aprovado para procurador da República fui para o Espírito Santo. Chegando em Vitória fui recebido no aeroporto por um procurador da República mineiro, Onofre Martins, que eu conhecia apenas por telefone. Quando eu disse que tinha reserva num hotel, ele respondeu: o seu hotel vai ser na minha casa. Fiquei no apartamento dele mais de um mês, aproveitando a hospitalidade de um amigo mineiro até chegar minha mudança. Depois retornei para Manaus como juiz federal. Passados alguns anos fui para Brasília onde morei até vir para Belo Horizonte, onde estou muito feliz. Em todos os lugares em que morei geralmente eu ia de vez, sem fazer prévias e longas reflexões de perspectivas. Darci Ribeiro, que morou no exterior, bem dizia que você tem que sair da sua casa para poder olhá-la de longe, porque se você ficar sempre dentro de casa você não consegue enxergar por fora. Essas experiências profissionais são únicas e de cada um, especialmente no Ministério Público e na magistratura, em que subjacente a cada processo existem pessoas com suas angústias, e conhecer o Brasil é fundamental para um magistrado brasileiro.

 

Como juiz federal o Sr. atuou na 23ª Vara Federal de Brasília e, em seguida, na 10ª Vara Federal, em ações emblemáticas ligadas à “lava-jato”, como a ordem de prisão do ex-deputado Geddel Vieira Lima, quando foram apreendidos R$ 51 milhões no apartamento do ex-parlamentar e a condenação do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, a 24 anos de prisão. O Sr. se considera um juiz “linha dura”?


Como juiz federal eu tive a oportunidade de atuar em diversas áreas. A atuação criminal em Brasília foi uma judicatura diferente a partir de 2015, quando começaram a dar entrada em grande volume processos complexos com centenas de réus, defendidos por excelentes advogados. Por outro lado, o Ministério Público também criou forças tarefas e a Polícia Federal passou a fazer operações policiais grandiosas de combate à corrupção, lavagem de dinheiro e crimes financeiros envolvendo até então intangíveis organizações e grupos. Os processos eram físicos e na Vara, única especializada nessa matéria, eu e o juiz federal substituto Ricardo Leite, tivemos que nos adaptar para dar conta daquela crescente demanda criminal, e tentar dar celeridade. Muitas foram as absolvições e condenações. Algumas penas foram altas para determinados réus, porque num mesmo processo eram atribuídos diversos crimes conexos ou em continuidade delitiva, acumuladores das sanções. É a lei criminal que dá as limitações das penas. Por exemplo, no início da minha carreira, sob a égide da lei antidrogas antiga no momento da aplicação da pena para um traficante, o somatório de penas, conforme a norma da época, eu fixava em média entre 6 e 10 anos. Com uma nova lei surgida posteriormente, que autorizou uma redução pela metade, a média das penas ficavam reduzidas entre 3 e 5 anos. Já afirmava Eduardo Couture, o juiz se move como um prisioneiro dentro do seu cárcere. O direito, em sentido lato, é essa cela em que ele se encontra. O juiz tem certa liberdade, mas não pode infringir a lei, seria como serrar as grades da sua prisão, e fugir da sua cela. Em todos os julgamentos meu objetivo maior foi aplicar uma sentença justa. Aliás, na qualidade de magistrado eu sempre procurei olhar também na profundeza dos autos.


Depois de ser desembargador (juiz federal no TRF-1) do TRF-1, o Sr. veio para o novo TRF-6 e, no último mês, foi eleito, unanimemente, presidente do Tribunal Regional Federal da 6ª Região, que abrange Minas Gerais, e tomará posse no dia 23 de agosto. O que o jurisdicionado mineiro pode esperar de sua gestão?


Os processos no Brasil como se sabe, pela conformação constitucional, tendem a se prolongar para diversos graus de juízes e tribunais; o sistema recursal ainda é um grande problema a ser resolvido no futuro. O jurisdicionado mineiro já aguarda, há algum tempo, a finalização de milhares de recursos que faziam parte do acervo do Tribunal Regional Federal da Primeira Região; a expectativa é grande e a pressão também. Mas não tenho dúvida de que os desembargadores federais nomeados para o TRF mineiro são comprometidos, eficientes e conscientes de que precisamos avançar para aprimorar a prestação jurisdicional, diminuindo ao máximo esse grande acervo. E muito já se fez. Apenas para exemplificar, foram transferidos do TRF-1 duzentos mil processos nesses dois últimos anos, e de setembro de 2022 até hoje, mesmo com uma equipe reduzida entre 7 e 8 servidores por gabinete, os desembargadores do TRF-6 julgaram 84 mil processos. É preciso observar que em muitas situações, o ato de julgar é muito mais do que elaborar decisões, porque com a massificação de ações e a proliferação de recursos similares, em face do sistema de precedentes estabelecido, o magistrado precisa ser além de tudo um excelente gestor e preparar sua equipe de modo a ter alta produtividade e assim poder diminuir o acervo processual. Na minha gestão como presidente do Tribunal, entre outras coisas, procurarei auxiliar na estrutura necessária para que o processo e o julgamento sejam céleres e eficazes, e que o TRF-6 possa ser a cada dia uma instituição profícua, dinâmica e acolhedora.


O TRF-6, um anseio antigo dos mineiros, já nasceu grande, com atuais 191.180 processos para serem julgados. Somente em 2023 foram mais de 51 mil processos novos distribuídos e, em 2024, já são 14.492 novos casos. O TRF-6 está, tecnologicamente, preparado para enfrentar esse acervo? De que forma, em sua gestão, pretende utilizar a Inteligência Artificial em favor da celeridade processual?


A criação do TRF-6 teve como pressuposto não aumentar despesas, o que nos colocou na posição de um tribunal econômico, com escassos recursos orçamentários. Por outro lado, os gabinetes dos desembargadores e os diversos setores da Justiça Federal ainda carecem de servidores e há pouquíssimas funções comissionadas. O tribunal foi criado sem que fosse acompanhado do aparato tecnológico correspondente e hoje tudo passa inevitavelmente pela tecnologia, tudo envolve informatização, não há praticamente nenhuma atividade administrativa ou judicial que tenha fluxo manual. Temos consciência de que nossos sistemas informatizados ainda possuem falhas, deficiências ou ainda não são possíveis de instalação. Mas graças ao auxílio do TRF da 4ª Região, mudamos de sistema processual do pje para o e-proc. Nesse ponto, creio que fizemos a escolha certa e no momento apropriado, como, por exemplo, se pode ver das recentes adesões ao e-proc pelos TJs de Minas Gerais e de São Paulo. Os projetos de inteligência estão adiantados nos cinco primeiros tribunais federais do país e penso que também iremos utilizar a Inteligência Artificial num segundo momento, depois de resolvermos problemas mais urgentes. Ajudar a nascer e fazer pioneiramente funcionar um órgão do Poder Judiciário nacional não é tarefa fácil. Louva-se aqui o grande esforço e trabalho da nossa primeira presidente, Mônica Sifuentes, do secretário geral juiz Ivanir Ireno e do diretor geral Edmundo Veras, extensivo a todos os servidores e magistrados de ambas as instâncias da Justiça Federal de Minas Gerais, pelo trabalho (conquanto desgastante) crescente e incessante.