Os tempos atuais condensam a velocidade na transferência de dados determinantes das relações sociais, culturais, políticas e econômicas, fortalecendo a sociedade da informação.
O bom e o obtuso, lado a lado.
Quem de nós haverá de separar o joio do trigo?
Os tempos atuais trazem inegáveis avanços na ciência e na tecnologia, junto com enormes desafios para as civilizações que na pós-modernidade, pautam-se pela democracia.
Os tempos atuais, de novidades e ambiguidades, obrigam à conjugação de liberdade de expressão fundamental do indivíduo com a conservação de instituições políticas essenciais ao pleno desenvolvimento da pessoa humana e à garantia da sua dignidade.
O avanço da desinformação em várias vertentes da experiência humana em sociedade é questão central a ser enfrentada, com urgência e seriedade, pelas organizações sociais, econômicas e políticas, nos âmbitos nacional e internacional.
A experiência humana com a desinformação não é nova.
Há registros históricos de diversos episódios em que a mentira determinou comportamentos e construiu narrativas falsas tomadas como verdadeiras, gerando impactos substanciais sobre os rumos das civilizações.
Relatos históricos dão conta de que Van Gogh, num acesso de fúria, houvera cortado a própria orelha durante uma briga com seu amigo Gauguin, tendo após enrolado o pedaço de si em um pano, que presenteou uma amiga. Van Gogh passou à história como um pintor genial, mas injustamente chamado de louco. Com a força da mentira, repetida à exaustão ao longo dos anos: “Campo de Trigo com corvos”.
Pois bem, estudos acadêmicos seguros trouxeram à luz a verdadeira história: foi Gauguin quem lhe extirpou a orelha, mas Van Gogh, num gesto nobre, disse à polícia que ele mesmo a havia cortado, para proteger o amigo.
Esse e outros episódios históricos revelam que a disseminação de desinformação, com objetivos pré-determinados ou não, foi prática comum na evolução dos processos políticos das civilizações humanas.
Na contemporaneidade, contudo, a desinformação opera de forma diferente. Não mais boca-boca.
Essa diferença diz com o uso em massa das tecnologias, que permite à maledicência falsa se espalhar instantaneamente em contraponto à verdade.
A circulação do falso provoca, divide, desacredita, traveste e corrói a verdade. A desinformação atribui ao indivíduo uma dúvida na realidade inexistente, potencialmente causadora de danos, às vezes irreparáveis.
As tecnologias de ponta, a inteligência artificial, trazem à tona o debate sobre a corrosão do princípio democrático, que rege os Estados que pelo ideário de que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido; e de que a pessoa humana é elemento nuclear da experiência coletiva.
Nesse terreno pantanoso da mentira disseminada, a corrosão da democracia, das instituições públicas e do arcabouço jurídico que as sustenta é evidente.
O cidadão e seu papel fundamental no direcionamento dos rumos da sociedade politicamente organizada se enfraquece.
Nesse contexto, o ser humano, entidade nuclear da experiência democrática, tem, aos poucos, cedido espaço vital para as tecnologias no fazer cotidiano, perdendo, com isso, a sua capacidade de não só exercitar o seu poder de crítica como também de impulsionar a construção de novas realidades, não obstante as inegáveis benesses da tecnologia.
A desinformação tem atingido pilares fundamentais da organização política denominada Estado Democrático de Direito, incluindo o processo eleitoral, e o torna vulnerável.
Essa vulnerabilidade, se efetivamente ocorrer, torna errado o certo, torna o certo errado e assim, apequena o valor do voto, e da diversidade e inclusão decorrentes do seu exercício pleno; reduz a legitimidade do exercício do poder pelos representantes eleitos.
No ponto de vista dos que disputam os cargos eletivos, a desinformação é igualmente danosa, e atinge ao mesmo tempo, candidatos e partidos políticos e a capacidade de o eleitorado tomar as suas decisões com base no princípio da veracidade
Minada a igualdade de condições da disputa, pela difusão generalizada da desinformação, não enfrentadas devidamente, as campanhas eleitorais deixam de ser o espaço politicamente legítimo para o debate público, para se transformar num campo de batalha à margem do ordenamento jurídico.
O Brasil, em 2024, está vivendo mais um processo eleitoral. Desta vez, serão escolhidos prefeitos e vereadores de todos os 853 municípios mineiros, também de todos os municípios brasileiros. Trata-se de momento fundamental para uma ampla discussão em torno dos interesses locais.
Esta é, sem dúvida, a grande riqueza dos pleitos municipais: uma maior proximidade entre eleitores e candidatos, e entre esses e os temas que lhes afetam.
A malversação da inteligência artificial nas campanhas eleitorais, para propagar conteúdos falsos e macular a normalidade do pleito, a exemplo das deepfakes e da criação de outros conteúdos sintéticos falsos, é o grande desafio que nos é colocado enquanto nação civilizada.
A experiência brasileira, que não está descolada da experiência de outras nações igualmente democráticas, tem apontado para a necessidade de um combate efetivo à desinformação, principalmente com ações preventivas e a responsabilização dos agentes responsáveis pela sua criação e propagação.
Mais que a efetiva aplicação das regras sancionarias, a prevenção se inicia com o resgate da força e a transformação do cidadão comum em um agente de combate à circulação da desinformação.
A verdade nasce e cresce no indivíduo até onde ele permitir. É um bem indissociável de uma vida plena em comunidade, em sociedade.
Não se pode esquecer de que a democracia é um fazer cotidiano individual e coletivo, e que o seu avanço depende de constante vigília em torno dos seus ideais e das ferramentas jurídicas que a tornam capaz de produzir efeitos no dia-a-dia, para que, com isso, todos nós mineiros e brasileiros possamos usufruir das liberdades e das garantias frutos de lutas históricas dos que nos precederam no Brasil.
Nós escolhemos o trigo.