JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO - PROCURADOR DA REPÚBLICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL  -  (crédito:  Divulgação)

JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO - PROCURADOR DA REPÚBLICA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

crédito: Divulgação


O Sr. tem sólida formação em Direito Ambiental, tendo, inclusive, coordenado o Curso de Mestrado e Doutorado com ênfase em “Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável”. Quais os avanços e principais conclusões da COP29 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada de 11 a 22 de novembro, em Baku, no Azerbaijão?


Embora aquém da necessidade e da urgência do assunto, a COP29 deu alguns passos adiante no combate às mudanças climáticas. Talvez o principal tenha sido a aprovação de padrões de qualidade para créditos de carbono. Sem eles, o mercado global de carbono não sairia do papel. De acordo com a ONU, os recursos gerados nesse mercado financiarão projetos que reduzirão as emissões de gases de efeito estufa. A guinada pró-mercado, anunciada desde a aprovação do Pacto Global em 2000, reflete uma estratégia pragmática da Organização, diante da relutância ou timidez dos países mais ricos em cumprirem seus compromissos financeiros para apoiar nações em desenvolvimento na mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Outro avanço da COP29 pode ser visto na ênfase dada ao aumento da transparência nos fluxos dos financiamentos climáticos com a operacionalização do Fundo de Perdas e Danos, estabelecido na COP27. Essa providência, se efetivamente adotada, tende a ampliar tanto a responsabilidade dos Estados, quanto a confiança que deve existir entre eles. O rascunho do texto – ainda não concluído até hoje, 22 de novembro –, prevê que a meta de financiamento climático chegue pelo menos US$ 1,3 trilhão ao ano até 2035, o que ajudaria os países mais vulneráveis a se adaptarem aos danos causados pelas mudanças climáticas e a se adaptarem a essas mudanças, incluindo a construção de seus próprios sistemas de energia limpa. Esse montante supera o compromisso anterior de US$ 100 bilhões anuais. Não entraram no texto as formas desses aportes financeiros, se por meio de subsídios ou empréstimos, dos Estados ou do setor privado, o que é muito grave. As nações mais ricas estão resistentes em destinar mais do US$ 250 bilhões anuais, o que pode jogar por terra (ou para fora dela) todos os esforços. De todo modo, o Banco Mundial e outros bancos multilaterais de desenvolvimento anunciaram um aumento no financiamento climático para países de baixa e média renda, principalmente em projetos de energia limpa, tecnologias sustentáveis e iniciativas de adaptação climática. As cifras alcançariam US$ 120 bilhões por ano até 2030, com outros US$ 65 bilhões mobilizados do setor privado com a promessa de que haveria um aumento desses valores para 2035. Alguns países apresentaram metas mais ambiciosas de redução de emissões, incluindo planos para acelerar a transição energética, a descarbonização de setores-chave e para adotar políticas de eficiência energética. Foram também firmados acordos para a proteção de florestas tropicais, manguezais e outros habitats, reconhecendo seu papel na absorção de carbono e na resiliência climática. A questão agora é pôr em prática esses poucos avanços – mas ainda assim avanços -, diante de um cenário pouco animador nos próximos anos. Os eventos meteorológicos recentes mostram com força descomunal que a emergência climática não é uma questão ideológica, mas uma realidade que demanda urgentemente providências de todos nós, independentemente do gênero, cor, raça, etnia, idade ou orientação política. A humanidade muitas vezes parece cegar-se deliberadamente da sua própria tragédia ou vulnerabilidade. E já pagou muito caro por essa cegueira. Espero que não tenhamos de pagar ainda mais outra vez. Como sou um cético otimista, acredito que não sucumbiremos ao desastre do clima.


O Sr. foi o primeiro coordenador da força-tarefa do Ministério Público Federal criada para apurar o desastre ambiental em Mariana. O Sr. chegou a criticar a postura dos poderes Executivo e Legislativo, assim como as medidas que até então haviam sido adotadas pela Samarco, passados, na oportunidade, dois anos do rompimento da Barragem de Fundão. Quais foram as maiores dificuldades e entraves que enfrentou na condução das negociações e apurações?


Creio que, para todos os envolvidos, o ineditismo e a extensão do evento foram os primeiros grandes obstáculos. É certo que o déficit de política pública de prevenção de desastres com barragem e as falhas do sistema de gestão de riscos da empresa contribuíram para que tudo infelizmente acontecesse. Déficits e falhas que se projetaram no longo e dificultoso processo de negociação. Havia, sobretudo, no início uma grande desarticulação dos órgãos de Estado. Lembremos que eram três governos, União, Minas e Espírito Santo, três diferentes ramos do ministério público e da defensoria pública. As estratégias e agendas eram pelo menos em parte distintas entre elas. Eram também três empresas envolvidas que, certamente, tinham internamente suas diferenças. A pluralidade e heterogeneidade das pessoas atingidas eram outro desafio. Para nós, a construção do modelo reparatório haveria de ser participativa, como, aliás, é o que determinam as normativas internas e internacionais. Não era um consenso dentro das tríades públicas, todavia, a forma como se daria essa participação. Após um início tumultuado, conseguiu-se formar uma agenda com o que tinha em comum entre todos. Ajustou-se extrajudicialmente uma inversão do ônus da prova que, pela dimensão e capacidade das instituições, foi a primeira e mais paradigmática em matéria de desastre ambiental no Brasil e talvez no mundo. Acordou-se nessa fase um mecanismo de participação dos atingidos também inédito. Conjugaríamos assistência técnica e voz das pessoas atingidas na definição da matriz de dano. No final de 2018, voltaram os desencontros. Se a convergência tivesse se mantido, não teríamos de esperar 2024 para a repactuação. O que é mais dolorido: as vítimas da tragédia foram várias vezes vitimizadas desde o fatídico novembro de 2015, pela demora de sua reparação e pelas idas-e-vindas das negociações.


Depois de nove anos foi, finalmente, assinado o acordo de reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Mariana. O Sr. considera que foi uma boa solução? E danos à saúde pelo contato com água, solo e alimentos contaminados e que ainda podem estar ocultos? O Sr. entende que já estão contemplados?


O acordo é bem abrangente. Houve um esforço interinstitucional imenso para se chegar a um termo de consenso entre todos os que se sentaram à mesa de negociação. Nesse sentido, foi uma conquista. Há, no entanto, algumas ressalvas que têm sido feitas. A serem tomados como base os estudos realizados pelos peritos independentes, contratados com base do Termo de Ajuste de Conduta sobre Governança (TAC-GOV), que envolveram talvez os mais experientes profissionais de diversas áreas do conhecimento, a FGV, a Ramboll e a Lactec, os parâmetros e métricas de reparação dos danos socioambientais e econômicos constantes do acordo-2024, ficaram abaixo do que seria necessário. A matriz de danos tem problemas conceituais que se refletiram nos programas e valores reparatórios. Na questão de saúde, por exemplo, previa-se um estudo longitudinal e transversal dos impactos sobre as pessoas atingidas, incluindo áreas de controle nas adjacências de toda Bacia do Rio Doce. Essa metodologia seria muito mais adequada, em nosso sentir, para realizar o diagnóstico sincrônico e diacrônico dos efeitos psicológicos e físicos do desastre sobre a população. Não foi exatamente esse o caminho adotado. É provável que alguns impactos importantes fiquem à conta de quem foi atingido e do Estado. Aliás, muitas das informações e dos estudos que resultaram do trabalho dos especialistas foram infelizmente subaproveitados. Os mecanismos de participação previstos no TAC-GOV também foram desconsiderados. Eles estabeleciam procedimentos de negociação que incluíam os atingidos e as empresas, ancorados nos estudos técnicos da matriz de danos e de reparação, com a mediação dos órgãos do sistema de justiça. Acusaram esse TAC, assinado por todos e homologado judicialmente, de criar dificuldades deliberativas. Em parte, é verdade, porque as comunidades atingidas participariam ativamente da definição de cláusulas de reparação individual e coletiva. Teríamos talvez um ano para esse processo, o que teria sido concluído em 2019 ou no mais tardar em 2021 em virtude da Pandemia. O preço da demora seria a definição de medidas de reparação mais legítimas e mais efetivas. Teria sido bom para todos. No entanto, as resistências de alguns setores dos governos e das próprias empresas, mesmo tendo assinado o acordo, impediram que ele fosse adiante. Infelizmente, o TAC homologado nunca foi concretizado. Ainda me pergunto o porquê. De todo modo, o atual acordo, mesmo com todas as ressalvas, é o que se tem e é com ele que se há de trabalhar. Todo acordo é criticável, nunca é o ideal, é sempre o possível que se consegue diante das circunstâncias e das restrições sociais, econômicas e jurídicas. Resta, agora, torcer e trabalhar para que não tenha problemas também para sua execução.