"Não se trata apenas de mim. É a Justiça da Bahia, a Justiça brasileira. É uma mensagem enviada para a sociedade", diz Mamadou Gaye -  (crédito: Arquivo pessoal)

"Não se trata apenas de mim. É a Justiça da Bahia, a Justiça brasileira. É uma mensagem enviada para a sociedade", diz Mamadou Gaye

crédito: Arquivo pessoal

Mamadou Gaye, ex-cônsul honorário da França na Bahia, foi alvo de mensagens que feriram sua “honra objetiva e subjetiva”, como reconheceu o Tribunal de Justiça da Bahia ao julgar ação movida por Gaye.  Entre os ataques recebidos, o ex-representante foi chamado de “tirano africano” e acusado de roubar informações pessoais de franceses para uso próprio. Diante da condenação do agressor, Gaye contesta o valor estipulado para a indenização, considerado por ele irrisório diante da gravidade da situação, e questiona a falta de demanda por retratação. 

 


O ex-cônsul, que ocupou o cargo de 2019 até maio de 2024, conta que os ataques foram feitos por um cidadão francês que estava sendo atendido pelo consulado. Gaye prestava assistência a ele e conta que, em determinada época, o atendido começou a demandar resoluções de assuntos que não eram de competência do cônsul honorário, cargo exercido de maneira voluntária.


O assédio teria começado em maio de 2023 por meio de um e-mail destinado a Gaye e com entidades, como o vice-cônsul da França em Recife, em cópia. Na mensagem, o francês afirmou que “gostaria de constatar a completa incompetência” de Mamadou como cônsul honorário. 


O então representante francês, também doutorando no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade na Universidade Federal da Bahia (UFBA), conta que chegou a responder o e-mail avisando que poderia acionar a Justiça, mas as mensagens ofensivas não pararam de ser enviadas.

 

 

Em 4 de outubro de 2023, o francês enviou para Mamadou um e-mail o acusando de estar interessado em roubar informações dos cidadãos franceses para fins pessoais. Além disso, disse: “[Você] usou sua posição como um verdadeiro tirano africano, tiro-lhe o chapéu, mas o problema reside no fato de [você] estar a representar a França.”


Na mesma mensagem, o condenado por danos morais termina desejando a Mamadou uma boa volta ao “seu buraquinho em Paris", como consta na sentença.


Condenação


Mamadou entrou na Justiça contra o autor dos e-mails e requereu o pagamento no valor de R$40 mil por danos morais, retratação pública e que o francês se abstivesse de proferir novas ofensas. Em janeiro de 2024, o réu foi condenado em primeira instância. No entanto, o Tribunal de Justiça da Bahia determinou que o francês, que não apresentou defesa, pagasse apenas R$3 mil. Não houve determinação quanto à retratação.


A juíza responsável reconheceu que houve violação dos direitos da vítima. “Resta comprovado que o réu encaminhou e-mail com mensagens difamatórias à honra do autor (Gaye), sendo que os emails foram enviados copiando diversos interlocutores institucionais franceses e brasileiros”, consta a sentença. No entanto, ressaltou que o magistrado deve ter cautela para que não seja propiciada a “captação de lucro ou enriquecimento ilegal da parte autora.”

 

 

Para Mamadou, o valor estipulado não condiz com a gravidade da situação e demonstra como ataques de injúria racial não são adequadamente condenados. Ele defende que as respostas da Justiça às agressões desse cunho deveriam ser capazes de reforçar aos grupos marginalizados e minoritários que eles têm os mesmos direitos que todas as pessoas. “Não se trata apenas de mim. É a Justiça da Bahia, a Justiça brasileira. É uma mensagem enviada para a sociedade”, diz Gaye. 


O ex-cônsul também ressaltou a falta de determinação de uma retratação. “O dano foi público, a injúria foi pública. A retratação precisa ser pública também, por uma questão, sobretudo, educativa”, afirma.


Diante disso, Gaye entrou com recurso. No entanto, em dezembro de 2024, ele não foi aceito e a sentença se manteve. O ex-cônsul considerou a “falta de posicionamento da Justiça”, como uma segunda violência. “Na Bahia, eu encontrei a África. No Brasil, eu encontrei a África (...), mas não adianta por um lado celebrar a herança africana, se quando um representante dessas culturas sofre racismo, a Justiça não condena. Tem que ter coerência”, desabafa Gaye. O senegalês naturalizado francês afirma que vai entrar com um novo recurso.

 


O Estado de Minas procurou o TJBA para pedir um posicionamento, mas o magistrado afirmou que “não emite qualquer opinião sobre processos em andamento, processos pendentes de julgamento ou julgados. O pronunciamento ocorre nos autos.” Por sua vez, o Consulado Geral da França em Recife disse que “não comenta decisões de Justiça da França ou Estados estrangeiros. Mas nós condenamos o racismo em todas as suas formas.”


Visão jurídica


Diretor de Diversidade e Inclusão da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG), Marcelo Colen explica que não há um critério objetivo a ser seguido para estipular o valor de uma sentença, mas alguns fatores são levados em consideração. Entre eles: a gravidade do caso, o impacto na vítima, de que forma se deu a ação do agressor e a condição financeira das pessoas envolvidas, de modo que haja uma punição, mas sem ser exagerada ou que enriqueça uma das partes.


No caso da indenização a Gaye, Colen interpreta que, para quem julgou, a situação não foi considerada grave e que a quantia determinada “me parece desproporcional na perspectiva da gravidade da conduta.” O diretor explica que, quando comparado a outros casos, o valor estipulado é irrisório. Para exemplificar, Marcelo diz que indenizações de R$3 mil reais a título de dano moral costumam ser atribuídas a casos como atraso indevido de voo por uma companhia aérea, o que para ele é incomparável com injúria racial.

 

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O diretor de Diversidade e Inclusão da OAB-MG também acredita que uma retratação pública seria importante em um caso como esse devido a seu valor educacional. 


*Estagiária sob supervisão do subeditor Humberto Santos