Ricardo Sontag
Professor de História do Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Autor de “’Código negro’? O regime jurídico excepcional de controle dos escravos no Brasil (1830-1888)”

O caso do homem branco que chicoteou com um cinto um morador de rua negro em Itaúna mobiliza memórias do açoite contra escravos – e vai além!

O autor, no vídeo que viralizou – sim, a selvageria foi filmada e divulgada pela internet (deveríamos voltar a nos espantar com essa banalidade contemporânea!) – bradou: “não é pela cor”, “não é escravidão”. A vítima, viciada em drogas, estaria recebendo uma lição por não querer trabalhar, já que estaria “aceitando” RS 10 em troca das chicotadas. No delírio moralista do autor, os internautas estariam “aprendendo” as nefastas consequências do vício.

Dois dos principais motivos que justificavam, no Brasil do século 19 ainda escravista, os açoites do senhor contra os seus escravos eram a embriaguez e a recusa ao trabalho (muito mais extenuante do que a já excessiva escala 6 X 1 atual). A semelhança salta aos olhos.

“Não é pela cor” e “não é escravidão” só revelam que o autor estava ciente de que o seu gesto nos faria lembrar da cor negra e da escravidão. A negação é vazia, como palavras que se despedaçam diante da realidade histórica.

As penas cruéis e os açoites foram abolidos há exatos 200 anos atrás pela Constituição de 1824. Porém, o Código Criminal de 1830 previa que, caso o réu fosse escravo, toda pena que não fosse morte ou trabalhos forçados seria substituída por açoites. Afinal, as garantias dos cidadãos brasileiros não protegiam os escravos. Seres brutos como os negros – diziam os escravistas da época – só poderiam ser punidos por meios brutos, como os açoites. Sem contar que, diferentemente da pena de morte, o açoite permitia que o escravo voltasse ao trabalho. Essa era a pena pública de açoites. Mas existia ainda a sanção doméstica de açoite, aplicável pelo senhor ou por seus prepostos contra os seus escravos. A garantia constitucional também não alcançou essa prerrogativa do governo doméstico dos senhores.

No Brasil oitocentista, o açoite também afligia presos, com a natureza jurídica de sanção contra infrações que turbariam a ordem interna do cárcere; e como prerrogativa dos pais, a surra de cinto contra as crianças ainda perdura na memória de alguns.

Sobretudo as simbologias do escravo e da criança evocam a pretensa superioridade moral de quem violenta o corpo alheio para apontar o caminho do bem. Tudo em nome de Deus! (que foi tantas vezes invocado em um vídeo tão curto). Para quem é cristão, imagine a cólera divina diante de um uso tão baixo do nome de Deus... Além do mais, que bem é esse?...

A atitude do apóstolo-do-bem-chicoteador-do-século-21, se olharmos com cuidado, não seria aceita nem sob o regime escravista brasileiro do século 19. Ora, como sanção doméstica, o açoite só poderia ser aplicado pelo senhor ou por seus prepostos; como pena pública, só pela justiça do Estado. Os senhores, aliás, nas notícias de jornal do século 19 sobre escravos fugidos costumavam ameaçar com ações judiciais quem seviciasse o escravo encontrado. Além disso, açoitar um adulto significava marcá-lo com a infâmia. Para alguns juristas do século 19, esse era um motivo para abolir os açoites – “exceção única à civilização cristã”, eles se lamentavam – antes mesmo da abolição da escravidão, pois a infâmia dificultaria a inserção dos futuros libertos como cidadãos plenos.

O que diriam esses juristas de outrora diante de um cidadão pleno (será?) surrado com cinto para qualquer internauta ver?