O Supremo Tribunal Federal (STF) deve iniciar hoje o julgamento de três ações judiciais que podem trazer profundas mudanças à democracia brasileira. Em suma, elas tratam do Marco Civil da Internet, regulação que completou 10 anos em abril de 2024. O texto requer atualizações ou, no mínimo, a criação de novos mecanismos que o circundem, com objetivo de abarcar as profundas mudanças pelas quais a relação da sociedade com a web passou nos últimos anos.

A discussão do tema vem em boa e necessária hora, até mesmo com um importante atraso. A operação mais recente da Polícia Federal (PF), que terminou com o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outras 36 pessoas, informou à sociedade que uma das frentes de atuação da trama acusada de ser golpista era voltada a ataques virtuais a opositores. Outros dois núcleos do grupo – a deslegitimação da vacina contra a Covid-19 e as ofensas às instituições – também passavam diretamente pela divulgação de conteúdo fraudulento e de ódio nas redes sociais.

Na prática, o STF vai discutir o aumento da responsabilidade das chamadas big techs, como o Google, a Meta e o X (antigo Twitter), para frear esses conteúdos danosos à democracia, hoje compartilhados em massa. Uma das peças centrais desse quebra-cabeça é o artigo 19 do Marco Civil da Internet. O trecho, hoje, só responsabiliza os sites quando há descumprimento de uma decisão judicial – com exceção do compartilhamento de fotos e vídeos sexuais sem consentimento da vítima, no qual a simples notificação da Justiça basta para a exclusão da postagem.

Acerta o STF ao chamar para si essa discussão, diante da total inércia do Congresso Nacional para avançar sobre o tema. O Projeto de Lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News, morreu na Câmara, após ser aprovado no Senado, diante da divergência ideológica acerca do texto. O presidente Artur Lira (Progressistas-AL) chegou a criar um grupo de trabalho para discutir, mas, na realidade, o ato se caracterizou como um engavetamento da proposta – o que dá ao Supremo a obrigação de julgar as ações mencionadas.

Publicamente, parte dos ministros do STF tem ressaltado a necessidade de frear os discursos de ódio e a antidemocracia propagada nas redes sociais. Alexandre de Moraes, por ser o relator de ações que envolvem a questão, como os atos de 8 de janeiro, se apresenta como principal rosto dessa reflexão, mas ela também se estende a Dias Toffoli, Gilmar Mendes e outros ministros. “Precisamos regular as plataformas digitais. O mundo se tribalizou por conta dessas plataformas, em que as pessoas vivem no seu viés de confirmação, sempre lendo as mesmas coisas e se radicalizando”, disse o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, em junho.

Se a necessidade de melhoria está pacificada, o STF tem “cascas de banana” a serem superadas nos julgamentos. Afinal, uma Corte judicial tratar sobre a questão é inédito no mundo democrático, já que outros países sempre fizeram essa discussão por meio de seus legislativos.

A principal preocupação diz respeito aos critérios a serem adotados. O aumento da responsabilidade das gigantes da tecnologia é necessário, mas há uma linha tênue entre o que deve ou não ser filtrado – ante os perigos de censurar conteúdos que, na verdade, nada têm de antidemocráticos ou de ódio.

Para reduzir os riscos, a nova regulação precisa se inspirar nos “times que estão ganhando”. O Supremo não deve, por si só, criar suas próprias regras e filtros para definir o que é ou não passível de responsabilidade das redes. Na verdade, deve olhar para regramentos exitosos de outros países e se concentrar em documentos consagrados, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, para definir aquilo que é válido e o que só traz prejuízos à democracia brasileira.

Até porque, a eventual criação de uma zona cinzenta, de indefinição, aprofundaria ainda mais os problemas. Em caso de incerteza sobre o que vale ou não, quem sai perdendo sempre é o usuário, o que resultaria em exclusão em massa de posts nas redes.

Assim como aconteceu com os escândalos com as empresas de apostas esportivas – que ante uma legislação ruim deitaram e rolaram por anos no Brasil às custas de trabalhadores e trabalhadoras viciados –, a regulação das redes merece uma discussão séria, madura e com participação popular, sem ignorar toda complexidade que envolve qualquer tema sobre a tecnologia e o mundo contemporâneo.