Laura Brito, Advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões
 -  (crédito: Arquivo pessoal)

Laura Brito, Advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões

crédito: Arquivo pessoal


O filme “Ainda Estou Aqui” tem levado milhões de pessoas aos cinemas no Brasil. Não é para menos. A história é tocante, é reparadora e ainda conta com a atuação primorosa de Fernanda Torres e Selton Mello.


Sem problemas de dar um spoiler, porque a história é parte da trajetória política do nosso país, no filme, Eunice Paiva, viúva do deputado cassado Rubens Paiva, luta por décadas para ter o reconhecimento do Estado brasileiro de que seu marido foi torturado e morto sob custódia estatal. Ao longo dos anos que sucedem o desaparecimento de Rubens há uma sensação de suspensão na vida da família e a beleza do filme é justamente a condução de Eunice para que eles saíssem desse estado de indefinição.


O desaparecimento de uma pessoa querida é uma situação desesperadora. O sentimento de dúvida, de dívida (toda busca é insuficiente) e de dor tomam conta da família e do entorno. A falta dos ritos de passagem dificulta o luto. Não bastasse, como não há prova cabal da morte, não há disparo imediato das suas consequências jurídicas.


Sem declaração de óbito, não há certidão de óbito, não há pensão por morte e não há sucessão. Ou seja, sua família, além de conviver com a dúvida, não consegue receber de pronto as soluções jurídicas para a perda de um ente querido.


Para o desaparecimento de uma pessoa, o Direito oferece duas soluções: a morte presumida e a declaração de ausência.


A morte presumida é declarada quando for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida. Ou seja, não se encontrou o corpo, mas a probabilidade do falecimento é muito grande. Por exemplo, uma pessoa que estava no local de um grave acidente e não foi mais encontrada. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.


A ausência, por sua vez, é a constatação de um desaparecimento. Ninguém conclui que aquela pessoa morreu, mas que há bens e obrigações a serem administrados e o seu titular está em local incerto. Neste caso, há uma declaração judicial de ausência e a nomeação de um curador para o patrimônio e para questões previdenciárias.


As sentenças declaratórias de ausência são registradas no cartório de registro civil de pessoas naturais da comarca em que o ausente residia, em livro especial, diferentemente do livro de registro de óbitos. Depois de vinte anos, a família pode pedir o registro da morte presumida no mesmo cartório. Vinte anos depois!


Viver com o fantasma de quem não está mais aqui, mas não se sabe onde está, é um pesadelo. Esse horror pode ser vivido por muitas razões, seja a decisão desarrazoada de uma pessoa de desaparecer, seja por violência urbana e sumiço do corpo.


Mas quando esse pesadelo é forjado pelo próprio Estado, como no caso dos desaparecidos no período da ditadura, esse tormento passa a ter contornos ainda mais perversos – como pedir amparo ao Estado que deliberadamente causou toda essa aflição? A toda dor é somada o medo e o silenciamento.


Essa foi a luta de muitas famílias, de muitas mulheres como Eunice Paiva, que buscaram por um reconhecimento da verdade dos fatos, assim como uma reparação histórica, ainda que somente por meio de documentos, sobre como esse desaparecimento de fato aconteceu. Ou seja, que tivessem em mãos uma certidão de óbito e não somente uma declaração de ausência.


Essa história ganhou mais um capítulo neste 11 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. O Conselho Nacional de Justiça regulamentou o dever de reconhecer e retificar a certidão de óbito de todos os mortos e desaparecidos vítimas da ditadura militar reconhecidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Essas famílias não só farão jus a uma certidão de óbito, mas terão o direito de fazer constar, inclusive por retificação de certidões já emitidas, a causa da morte: "morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964".


Não tenho dúvidas de que a repercussão do filme de Walter Salles foi importante para que essa decisão fosse tomada. A arte é parte relevante de quem somos e do que decidimos não esquecer. Essa reparação é essencial porque há ameaças que ainda estão aqui.