O Globo de Ouro concedido a Fernanda Torres é muito mais do que o reconhecimento internacional de uma grande atriz que interpretou uma mulher em guerra contra o Estado brasileiro para que houvesse o reconhecimento de que fora o responsável pela morte e pelo desaparecimento do marido, vítima do arbítrio e do cinismo da ditadura militar. A premiação vem em um momento no qual o país discute não apenas o assanhamento do extremismo político, inimigo declarado do Estado Democrático de Direito, mas, principalmente, se a Lei da Anistia abrange o crime de ocultação de cadáver.
“Ainda estou aqui” mostra a serena bravura de Eunice Paiva em busca do paradeiro de Rubens Paiva, cuja família sabia estar morto, mas que a bandidagem dos porões da tortura negou a dignidade da entrega do corpo para que dele pudesse se despedir. Essa regra mínima de civilidade também foi interditada a muitas outras pessoas, que até hoje não sabem onde estão os despojos de pais, filhos e irmãos. Sob o óbito presumido, foram-se sem que se derramasse o pranto da saudade.
Tal indignidade, porém, é escarnecida por grupos radicais, que por torpeza cultivam a ditadura militar como exemplo de (fantasiosa) virtude. A invasão às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 foi o exemplo mais recente da manipulação da ignorância: pela violência, principal argumento do extremismo, tentou-se derrubar um governo legitimamente eleito por acreditarem que o morto e inexistente comunismo seria implantado no Brasil. Esse terrível episódio completa dois anos amanhã, e é vergonhoso que no Congresso haja parlamentares que desprezem sua importância.
O prêmio de Fernanda reforça, também, a dúvida sobre se a Lei da Anistia vale para a ocultação de cadáver. Para o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), é crime continuado e, portanto, imprescritível. A manifestação foi no âmbito de denúncia do Ministério Público Federal (MPF), de 2015, contra Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, e Lício Augusto Ribeiro Maciel. Ex-militares do Exército, eles são acusados de assassinato e desaparecimento de corpos de militantes de esquerda na Guerrilha do Araguaia. Curió, assassino confesso – ele mesmo admitiu as mortes no livro “Mata! O Major Curió e as guerrilhas do Araguaia” (Cia das Letras), do jornalista Leonencio Nossa –, foi recebido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, em 4 de maio de 2020, e saudado como “herói da pátria”.
Em paralelo à discussão no STF, na Câmara tramita o Projeto de Lei 2.086/24, que altera o Código Penal para aumentar a punição do crime de destruição, subtração ou ocultação de cadáver. Do deputado Jonas Donizete (PSB-SP), está parado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) à espera de relator e de boa vontade para ser analisado.
Daí porque o prêmio de Fernanda transcende a arte. Esse Globo de Ouro traz à tona a obrigação de o Brasil deixar de jogar para baixo do tapete a história como se lixo fosse.
Editorial
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Um prêmio além da arte
O prêmio de Fernanda reforça a dúvida sobre se a Lei da Anistia vale para a ocultação de cadáver. Para o ministro Flávio Dino, é crime continuado e, portanto, i