Alice Sant’Anna
“salto ornamental”
os poucos segundos diante da câmera
não fariam jus anos (uma vida
inteira) de ensaios e dores musculares
e alimentação regrada e tantas outras privações
os poucos segundos mostram
a atleta no trampolim
ela se prepara para o salto
que quem sabe
vai lhe render uma medalha
uma vaga nas olimpíadas
a consideração de alguém tanta coisa
o treinador apreensivo finge
tranquilidade no telão
vai dar certo já fizemos isso infinitas vezes
ela se prepara para o mergulho
pensa que o melhor é não pensar
em nada
transmitir coragem e autoconfiança
os fotógrafos bastante entediados
sem conseguir entender o que dá
a certos atletas um décimo a mais um a menos
no fim das contas é só um pulo na piscina
a não ser que erre feio
que caia de costas ou de barriga
que uma perna vá pro lado
que um braço não fique junto ao corpo
a não ser que o mergulho seja bruto
e suba muita água a não ser que seja
algo menos que perfeito
o passo de dança ensaiado em cada milímetro
que começa com um sorriso e termina
com a piscina recebendo a atleta sem alarde
sem ondas na água quase
como se nada tivesse acontecido
a atleta se prepara é dada a largada
na hora do salto sabe-se lá
o que se passa na cabeça
enquanto finge não passar nada
ela corre com destreza no trampolim
e mergulha na água de cabeça
sem o mortal
sem as três piruetas
sem a manobra prevista
que treinou a vida toda e lhe valeria
uma medalha ou patrocinadores ou um aumento
sobretudo a admiração de alguém
ela esquece
não teve vontade
deu um branco vai entender
mergulhou na água de cabeça
no telão a expressão incrédula do treinador
o zero goro dos jurados
os fotógrafos finalmente entretidos
“seis da tarde”
decidiu ter filho
quando soube da morte do amigo
a partir desse momento passou
a ver o amigo quase todos os dias na rua
ontem um pouco mais moreno
hoje mais atarracado
semana passada era um homem
de negócios na faria lima
de calça cáqui e camisa azul e crachá
na última vez que foi a Ipanema viu também
estava um pouco mais gordo de short amarelo
provavelmente não usaria aquele short
mas era ele
quando ficou sabendo precisou
dar a notícia aos amigos
sentou na escada de incêndio do escritório
e telefonou para cada um
eram seis da tarde
estavam todos indo embora
“vaga-lumes”
é o último dia do ano
poderíamos dizer o apagar das luzes
às nove da noite desligamos a casa
e vamos para a varanda
na escuridão esperamos até que os olhos se acostumem
os vaga-lumes chegam aos poucos
e de repente são dezenas
assistimos à farra em silêncio
broches que acendem e apagam no breu
não digo nada mas em segredo
duvidou um pouco que existam
as luzes mais distantes são sempre estrelas ou naves
as luzes assim tão próximas só podem ser
fruto da imaginação
deixamos que você se decida por si
(se encarasse os bichos apagados
na luz dura do dia
o que você veria?)
a essa altura você já deve ter percebido
há coisas que beiram a fantasia
para quem está o tempo todo
sendo apresentado ao mundo
se aparecesse um cachorro de duas cabeças
você não se espantaria
Sobre a autora e o livro
Nascida em 1988, no Rio de Janeiro, Alice Sant’Anna é poeta e editora. Publicou os livros “Dobradura” (2008, 7 Letras), “Rabo de baleia” (2013, Cosac Naify, prêmio APCA de poesia) e “Pé do ouvido” (2016, Companhia das Letras). Tem livros publicados nos Estados Unidos e no Chile. “Acrobata”, que acaba de chegar às livrarias, foi escrito ao longo de quase dez anos e, para Milton Hatoum, “deve ser lido em voz alta, como escuta de si mesmo e de tantos outros, e com a emoção do que pode ser vislumbrado através do espelho de cada página.”
“Acrobata”
• De Alice Sant’Anna
• Companhia das Letras
• 82 páginas
• R$ 69,90