Motivo de preocupação da população, a crise de segurança no país promete causar dor de cabeça ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva, mas também às gestões estaduais. Entre os anos de 2017 e 2019, o Brasil registrou uma queda substancial no número de mortes violentas intencionais.
A redução foi de quase 20 mil óbitos, fazendo o país sair de 59 mil homicídios para 41 mil em apenas dois anos, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No entanto, desde então, a situação da violência está estagnada em uma taxa elevada, com média de 40 mil vidas perdidas por ano em situações de violência extrema.
Especialistas ouvidos pelo Correio destacam o principal desafio na segurança da maior nação da América Latina: combater as facções criminosas. O poder público praticamente paralisou os avanços contra o narcotráfico e a sociedade convive com um poder paralelo que desafia o Estado e as instituições.
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Nos últimos meses, episódios envolvendo facções têm gerado grande repercussão e mostrado a ousadia dos criminosos. No Aeroporto de Guarulhos, o empresário Antonio Vinícius Gritzbach, delator do Primeiro Comando Capital (PCC), a maior facção criminosa do país, foi morto a tiros em plena luz do dia. Uma investigação preliminar aponta o envolvimento de policiais que seriam ligados ao PCC no caso. Ele estava em contato constante com o Ministério Público e com integrantes do Poder Judiciário, mas isso não fez com que os executores e os mandantes desistissem de colocar o plano de execução em prática.
Em Jericoacoara, no Ceará, outro crime chocou a população. Um jovem de 16 anos foi sequestrado e morto por oito homens próximo a uma pousada. As informações preliminares repassadas à polícia apontam que o adolescente foi executado por conta de um símbolo que fez com a mão em uma foto.
Sem saber que o gesto representava uma facção criminosa, o jovem assinou sua sentença de morte com uma foto publicada nas redes sociais. A área em que ele estava é dominada pelo Comando Vermelho.
Na briga por território para explorar o comércio de drogas, produtos ilegais, contrabando e serviços como distribuição de internet, gás, água encanada e até de postos de combustíveis, as organizações atuam para eliminar rivais e tiram a vida de quem não aceita pagar taxas cobradas pelo narcotráfico ou ousam levar até as autoridades denúncias sobre o domínio da região.
Nas últimas décadas, policiais foram cooptados, formando milícias, e até mesmo militares de forças armadas estrangeiras, como homens do Exército do Paraguai pagos para liberar a passagem de drogas na fronteira com o Brasil.
O diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, explica que o sistema prisional é o berço de praticamente todas as facções de base carcerária. Para ele, as facções, hoje, operam como grandes holdings — uma empresa que possui o controle acionário ou participação majoritária em outras empresas — do crime, como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital.
O PCC, que surgiu nos presídios de São Paulo, mantém 20 mil homens e suas fileiras e lucra cerca de R$ 1 bilhão por ano, de acordo com estimativas do Ministério Público de São Paulo. No total, o crime organizado fatura R$ 146 bilhões anualmente no país.
“Isso significa que o Estado não está exercendo controle adequado sobre esse sistema, formado por mais de 1,5 mil unidades prisionais nos estados e cinco unidades federais. Assim, é necessário passar por uma modernização não apenas legislativa, mas também da gestão dos presídios. Essa modernização envolve, por exemplo, a implementação do plano da ADPF 347, que deve ser homologado pelo Supremo Tribunal Federal nos próximos dias”, explicou.
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, as regiões Nordeste (que lidera o ranking desde 2011) e Norte são as que apresentam as maiores taxas de mortes violentas intencionais (MVIs) por 100 mil habitantes — 36,5 e 34,0, respectivamente, seguidas por Centro-Oeste, com 22,6, Sul (16,4) e Sudeste (14,0). O estudo destaca o fato de que as duas regiões abrigam os estados que mais sofrem com “um quadro acentuado de disputas entre facções de base prisional”, que buscam rotas e territórios.
Ainda segundo a pesquisa, o país possui uma taxa de 22,8 mortes intencionais para cada 100 mil habitantes, porém, estados como o Amapá — atualmente o mais violento — estão 206,5% acima disso, com uma taxa de 69,9.
O Anuário ressalta também que existem duas explicações principais para as MVIs no país: as disputas de mercado e pontos de vendas de drogas entre as organizações criminosas de base prisional e milícias que possuem o controle de territórios de forma “armada e violenta”. O material destaca o "Estudo Global sobre Homicídios 2023", do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, sigla em inglês), que mostrou que 50% dos homicídios nas Américas são motivados pelo crime organizado — a média mundial, de acordo com a pesquisa, é de 22%.
Além disso, o especialista frisa pontos “fundamentais” para se pensar sobre o futuro das prisões: “como separar presos de acordo com seus diferentes níveis de periculosidade? Como lidar com presos faccionados dentro das prisões, evitando que essas separações sirvam simplesmente como escritórios de recrutamento para as facções?”
Ele explica que é preciso desenvolver análises de risco e protocolos que considerem as particularidades de cada caso, garantindo que uma pessoa que cometeu crimes e precisa cumprir sua pena não caia nas mãos do PCC, do CV ou de outras facções. Na avaliação do diretor-presidente, isso exige investimento em tecnologia, modernização legislativa e na gestão do sistema prisional.
Para Renato, o país investe muito no patrulhamento ostensivo, nas polícias militares, mas “muito pouco” nas polícias civis e na investigação. “Esse desequilíbrio gera impunidade, e os poucos que são responsabilizados acabam, muitas vezes, sendo entregues ao crime organizado, uma vez que grandes lideranças estão misturadas com o crime comum.”
Guaracy Mingardi, ex-subsecretário Nacional de Segurança Pública e especialista em organizações criminosas, afirma que as facções não perderam poder no país, e estão se revezando no controle de territórios. “Elas continuam com força. Cada uma continua dominando determinado território. O PCC, principalmente, em São Paulo e no Paraná. O Comando Vermelho, especialmente no Rio, mas ele atua mais descentralizado. Tem no Mato Grosso. Para trabalhar isso, tem de fazer uma política de segurança de longo prazo”, destaca.
Para o cientista político, doutor pela Universidade de São Paulo (USP), o governo atual adotou algumas medidas importantes, como empregar a Polícia Federal para investigar o crime organizado. Porém, ele defende medidas que trariam mais efeito prático, como a criação de uma polícia de fronteira.
“O FBI existe para investigar. Para a fronteira, tem outras polícias. No caso do Brasil, tem todo o processo legislativo de criar mais uma polícia. A União poderia bancar parte das polícias dos estados que têm fronteira, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, Acre. Bancar para que elas mantenham um contingente maior nas fronteiras. No segundo mandato do Lula, um dos nossos projetos era esse. Não a criação, mas usando fundos do governo para financiar parte das polícias militares destes estados”, completa.
Ele enfatiza que o governo federal tem responsabilidades limitadas, pois a segurança pública é competência do governo estadual, mas que o Executivo federal pode adotar na padronização de ações, aquisição de tecnologia, pessoal e de combate aos crimes interestaduais.
Mortes pela polícia
O Anuário aponta que, em 2023, ocorreram 6.393 mortes decorrentes de intervenções de policiais civis e militares no país, uma taxa de 3,1 mortes para cada 100 mil habitantes. — a média se mantém desde 2018. O estado que registrou os maiores números de mortos nesses casos foi a Bahia, com 1.699, seguido pelo Rio de Janeiro, 871, e, em terceiro lugar, o Pará (525). Das 10 cidades com mais de 100 mil habitantes com as maiores taxas de letalidade policial, sete são do Nordeste e duas da região Norte.
As vítimas dos policiais civis ou militares são majoritariamente homens, que representam 99,3%, com uma taxa de 6,2 para cada 100 mil habitantes. Já a faixa etária mais assassinada é daqueles entre 18 e 24 anos, 41,5% do total, com uma taxa de 9,8. Além disso, as pessoas negras são as mais vitimadas por policiais, possuindo uma taxa de 3,5, um número 289% maior que o das pessoas brancas (0,9), representando 82,7% do total de mortos por agentes em 2023.
Renato explica que o Brasil possui uma cultura organizacional nas polícias que “valoriza o enfrentamento como regra de atuação”. Porém, para ele, é preciso explicitar que o uso desproporcional da força não é uma realidade em todo o país, se concentrando em estados e polícias específicas.
“Quando falamos do Rio de Janeiro, por exemplo, destacamos a Polícia Civil, que apresenta um nível de letalidade muito alto, assim como a Polícia Militar. Já em São Paulo, Bahia, Amapá, Sergipe, Goiás e, em menor grau, no Pará, também observamos essa questão. É importante destacar que a violência policial não se limita a uma questão ideológica ou partidária, já que estados como Bahia, governados pela esquerda há muito tempo, também enfrentam altos índices de letalidade policial”, aponta Lima.
Por outro lado, o especialista reforça que o uso da força pode ser legítimo em um confronto entre um criminoso e um policial, porque a vida do agente deve ser preservada. Apesar disso, ele ressalta a necessidade de questionar quem enviou aquele policial à linha de frente, como a operação foi planejada, pensada e executada.
Ele afirma que a discussão sobre violência policial precisa incorporar uma “dimensão institucional”. Segundo o especialista, o que está acontecendo não é lidar apenas com desvios individuais de conduta, mas, quando há muitos casos, eles “refletem padrões operacionais”.
“Mitigar os riscos da atividade policial significa proteger o policial, garantindo que, caso ele precise fazer uso da força, uma consequência possível de sua atividade, o ato seja analisado em todos os seus aspectos. Mesmo que o ato individual seja considerado legal, isso não significa que ele deva ser aceito como regra”, completa.
PEC da Segurança
Renato Sérgio de Lima defende ainda que a proposta de emenda à Constituição (PEC) da Segurança, apresentada pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, em nome do governo federal, possui um lado positivo que consegue mitigar e até anular as suas fragilidades e problemas. Para ele, o “grande mérito da PEC” é que ela toca em um assunto que “ninguém nunca quis enfrentar: o pacto federativo”.
O especialista explica que a proposta pensa a segurança como um sistema de políticas públicas que envolvem um conjunto de instituições que precisam estar articuladas e coordenadas a partir de métricas e parâmetros comuns. Segundo ele, a partir disso, poderia, de certa forma, balizar a ação no nível nacional e subnacional.
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“A segurança também envolve a prevenção da violência e a mitigação de riscos, como o envolvimento e a contaminação do crime organizado na Amazônia, algo que abordamos no estudo Cartografias da Violência na Amazônia. Ela é a solução? Não necessariamente, porque depende do que vai sair do Congresso. Tanto o campo conservador quanto o da esquerda, no geral, reduzem o debate sobre segurança a medidas de natureza penal e processual penal”, concluiu.
*Estagiário sob a supervisão de Andreia Castro