Há 40 anos, Tancredo Neves encerrava ditadura e era eleito presidente
Tancredo Neves foi sétimo mineiro eleito presidente da República e o primeiro civil após 21 anos de regime militar
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Siga no“Venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas indispensáveis ao bem-estar do povo”. Eram quase 13h de uma terça-feira, 15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves (PMDB) proferiu essa frase ao discursar no plenário da Câmara dos Deputados como presidente eleito. O noticiário da época relata um dia nublado em Brasília, mas também relata um dia de festa em todo o Brasil com o fim do ciclo autoritário iniciado com a ditadura militar e o golpe de 1964.
Há exatos 40 anos, o país voltava a ter um presidente civil e de oposição, após duas décadas de generais ocupando a principal cadeira da República. Tancredo Neves, ex-governador de Minas Gerais, obteve 480 votos no colégio eleitoral e aplicou em Paulo Maluf (SP) e no PDS, o partido de apoio dos regimes na época, uma derrota acachapante.
O então deputado federal paulista viu o candidato mineiro articular com o próprio regime e os dissidentes do PDS, incluindo o vice-presidente eleito, José Sarney (PMDB), que foi dirigente do partido de apoio aos militares até seis meses antes da eleição. Como resultado, Maluf conquistou apenas 180 votos. Nove delegados - representantes das Assembleias Legislativas - não votaram, enquanto 17 parlamentares se abstiveram. “Esta foi a última eleição indireta do país”, prometeu Tancredo perante “Deus e a Nação”.
Nova República
Nascia, então, a “Nova República”. No discurso, Tancredo ainda agradeceu a mobilização popular e ressaltou que o brasileiro é um “povo que não se abate, que sabe afastar o medo e não aceita acolher o ódio”. “Reencontramos, depois de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho caminho democrático. Não há pátria onde falta democracia”, exclamou.
Tancredo destacou o combate à inflação e o desenvolvimento social como suas prioridades. Disse que a primeira tarefa do novo governo era promover a organização institucional do Estado. “Se, para isso, devemos recorrer à experiência histórica, cabe-nos também compreender que vamos criar um Estado moderno, apto a administrar a nação no futuro dinâmico que está sendo construído”, frisou o mineiro.
O presidente eleito ainda ressaltou a promessa de campanha e reafirmou o compromisso de convocar a Assembleia Constituinte. Para ele, a nova Carta Magna deveria resultar de uma profunda reflexão nacional. “Constituição não é assunto restrito aos juristas, aos sábios ou aos políticos. Não pode ser ato de algumas elites. É responsabilidade de todo o povo”, afirmou.
'Vitorioso e gratificado'
Paulo Maluf, que semanas antes já havia admitido a derrota, declarou que se sentia “vitorioso e gratificado” por ter contribuído para a volta da democracia. Segundo ele, sua candidatura garantiu o processo político, resistiu a pressões para manter o partido independente e, inclusive, possibilitou a candidatura de Tancredo.
“A convenção que me escolheu foi a afirmação de independência do partido, e de sua disposição de enfrentar o continuísmo. Resistir à força, desafiar o poder. Fico feliz por ter ficado surdo ao canto das sereias, e ter resistido a todos os que tentaram desviar-me do caminho que possibilitou a vitória da democracia”, disse.
O então presidente da República, general João Baptista de Oliveira Figueiredo, telefonou para Tancredo e o parabenizou pela vitória, segundo a imprensa que o acompanhava em sua sala reservada no Congresso.
Na sua primeira manifestação pública, feita apenas para a Rádio Gaúcha, na Casa de Saúde São José, onde estava internado havia quatorze dias, o último presidente militar declarou que estava feliz com o resultado: “Se o Brasil está feliz, eu também estou. Se eu prometi, eu cumpri. De maneira que todos estamos felizes: os brasileiros e eu”, ressaltou.
Diretas Já
Mas o processo que levou Tancredo Neves a ser eleito o 31º presidente esteve longe da tranquilidade que os primeiros parágrafos dessa memória contam. Como o próprio Tancredo descreveu em mensagem enviada ao Estado de Minas após sua eleição, o país atravessou “meses de maior intensidade política”. “Não se cuidou apenas de escolher um presidente da República para promover a transição do regime autoritário para o regime democrático, mas também para dar início às profundas e mudanças e transformações que o povo está reclamando”, disse.
O país chegava no limiar da transição democrática, processo iniciado no fim da década de 1970 com a abertura “lenta, gradual e segura” iniciada pelo general Ernesto Geisel, seguido por Figueiredo e intensificado pela campanha das Diretas Já - quando milhões de brasileiros foram às ruas clamar pelo voto direto.
O fervor foi resultado da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 5, de março de 1983, assinada pelo deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT). Em 1984, aos poucos a proposta ganhou as ruas e políticos como deputado paulista Ulysses Guimarães, então presidente do PMDB e fiador do processo de redemocratização, passaram a organizar comícios que reuniram milhões de pessoas.
Apesar do amplo apoio popular, a Emenda Dante de Oliveira foi rejeitada no Congresso Nacional com 298 votos a favor, 65 contra e três abstenções. Para ser aprovada, a emenda precisava de 320 votos, mas uma articulação do governo militar resultou em 113 deputados ausentes na sessão. A caserna aceitava a transição contrariada, e só permitiria uma eleição indireta.
Formalidade
Para o historiador Bruno Viveiros, pesquisador do Projeto República da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a derrota da emenda foi apenas uma formalidade. “A democracia não é apenas uma forma de governo, é uma forma de sociedade em que o cidadão é crítico e participativo. Na rua foi uma vitória política magnífica. A ditadura militar estava vivendo uma crise política. Ninguém aguentava mais a ditadura e a inflação nas alturas, então, a sociedade estava indo para rua com os movimentos sociais e políticos”, explicou.
Viveiros lembra que é nesse momento que a figura de Tancredo, conciliador e articulador, surge para manter o povo mobilizado nas ruas ao se lançar para a campanha da eleição indireta do ano seguinte. Ao lado de Ulysses, conhecido como “Senhor Diretas”, o mineiro costurou aliança com o PDS, criando a chamada Frente Liberal - que mais tarde os dissidentes da base governista transformaria no Partido da Frente Liberal (PFL).
Junto ainda ao PTB e ao PDT de Leonel Brizola, o grupo criou a Aliança Democrática, sob a promessa de nova Constituição e a volta das eleições diretas. Maluf, por sua vez, não tinha o apoio do presidente Figueiredo, nem do vice-presidente, Aureliano Chaves. “Então, você tem uma oposição democrática fortalecida dentro do Congresso com essa articulação que o Tancredo Neves fez para rachar o PDS. Maluf tenta angariar votos, mas não consegue. E o povo estava na rua apoiando Tancredo, a classe artística apoiava”, afirma Viveiros.
O historiador ainda conta que o processo não era aceito pela linha dura do Exército, mas que os militares sabiam que a população não aceitaria uma virada de mesa em silêncio e, portanto, garantiria a eleição. Nesse contexto, ele lembra as manifestações que ocorriam na primeira edição do festival Rock in Rio, entre 11 e 20 daquele janeiro. “Cazuza vai fazer um discurso, Kid Abelha vai subir no palco com uma bandeira brasileira, Lulu Santos sai pedindo Diretas Já”, conta.
“Isso mostra o poder da cultura democrática. Foi todo um processo, página por página, com avanços e retrocessos, conquistas e derrotas, o jogo da política é isso. Mas demonstra que o Brasil tinha uma cultura democrática, porque o povo defendeu o resultado indireto e foi comemorar. Teve carnaval em São Paulo, Belo Horizonte, no Rio de Janeiro tinha o Rock in Rio. Se o povo tivesse ficado calado, era uma brecha para a linha dura tentar um golpe, e não aconteceu porque o povo estava na rua”, explicou.
O conciliador
O historiador Lucas Pedretti, autor do livro “A transição inacabada: violência de Estado e direitos humanos na redemocratização”, conta que a eleição de Tancredo Neves era parte do plano militar de não perder o controle do processo de abertura. Ele explica que o debate ocorre para entender as razões que motivaram a saída dos militares iniciada no governo Geisel.
“Existem razões de ordem econômica, razões políticas, razões de ordem militar. A gente pode dizer, em linhas gerais, que Geisel parece ter entendido que manter as Forças Armadas à frente de um regime produziu um desgaste na corporação que era muito prejudicial. O projeto era tirar os militares da frente da cena política, mas garantir que os ideais que levaram ao golpe não fossem substituídos. Não é uma abertura política que nasce tendo em vista a construção de uma democracia”, diz Pedretti.
A passagem de bastão para os civis era inevitável, a grande questão era quando e com quem. Pedretti lembra uma série de passos que foram cumpridos em meio ao plano, como a revogação dos atos institucionais, o fim do bipartidarismo e a anistia geral, ampla e irrestrita. Os militares não queriam perder o controle do processo.
“Eles saem tendo em vista dois princípios: evitar ‘argentinização’ da transição, como está escrito em relatórios militares, ou seja, evitar o banco dos réus e evitar o revanchismo, sair de cena sem correr o risco de processos jurídicos pelos crimes; o segundo ponto era o medo de uma responsabilização que não era de ordem criminal, mas política, ou seja, eles constroem todo um discursos para deslocar a Forças Armadas para fiadores da democracia”, explica. Os militares foram buscar um personagem que se adequasse a essas condições e encontraram em Tancredo Neves a figura do conciliador.
“Quando a emenda Dante de Oliveira é derrotada, a ala moderada do PMDB opera para construir pontes com os militares e produzir alternativa viável. Tancredo é visto como o cara do diálogo. Eles precisavam de alguém em que confiavam como o sujeito capaz de levar adiante um governo civil para não cair no risco do que eles chamam de revanchismo, e que na verdade a gente chama de memória e Justiça”, emendou o historiador.
Morte
Apesar da vitória, Tancredo não assumiu a Presidência, em 15 de março de 1985. O mineiro, na época com 74 anos, morreu em 21 de abril, após ficar 39 dias internado, em decorrência de uma falência múltipla de órgãos com uma causa que gera controvérsia até hoje. Na versão oficial, os médicos haviam dito que o presidente morreu por um processo de septicemia - infecção generalizada.
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Durante um mês, os brasileiros acompanharam tensos o noticiário sobre a saúde do presidente eleito indiretamente, mas que havia conquistado a legitimidade do apoio popular. Quem assumiu foi o vice, José Sarney, ex-presidente do partido e que apoiava o regime, em um ponto final que foi como um “balde de água fria” para a população que torcia pela recuperação do mineiro.
Na opinião de Pedretti, a frustração se dá pela figura que Tancredo Neves conseguiu construir durante a campanha, mas o projeto do Sarney não era diferente do que havia prometido o mineiro. “Tancredo foi capaz de construir essa figura de otimismo, transformação, e na medida em que ele morreu há uma quebra de expectativa, o que é compreensível. Mas quando a gente olha retrospectivamente, não cabe essa ideia de que o Brasil teria sido muito diferente”, avalia.
“O problema não é só a trajetória do Sarney como um quadro do regime, o que simbolicamente é muito significativo. O problema é a natureza do pacto político que permitiu que eles chegassem ao poder. Estava explícito nos documentos e discursos de Tancredo que o governo seria baseado no pacto de não revanchismo, da transição conciliada, e sem lugar para a política de reparação e memória”, conclui o historiador.