No momento em que o país vive a apreensão diante das mudanças climáticas e de desastres da natureza, representados de forma mais catastrófica pelas enchentes no Rio Grande do Sul, lideranças comunitárias do Norte de Minas dão exemplo de mobilização na defesa ambiental, conquistando uma regulamentação pioneira no estado: legislação municipal que reconhece os direitos de um rio e estabelece medidas para sua preservação e manutenção do seu volume.
A legislação inovadora será apresentada nesta terça-feira (4/06), em audiência pública da Na próxima A legislação inovadora será apresentada nesta terça-feira (4/06), em audiência pública da Comissão de Povos Originários e da Amazônica, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Será descutida a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Direitos da Natureza.
Leis que dispõem sobre os “direitos do Rio Mosquito” – do qual dependem dezenas de comunidades rurais que enfrentam o desafio histórico da seca – foram aprovadas pelo Legislativo e sancionadas pelo Executivo em dois dos três municípios banhados pelo manancial – Porteirinha e Serranópolis de Minas. Em Nova Porteirinha, a outra cidade cortada pelo rio, proposta semelhante foi encaminhada para a Câmara, com a expectativa de ser aprovada em breve. O curso d’água é afluente do Rio Gorutuba, que desemboca no Verde Grande, na Bacia do Rio São Francisco.
Foi por meio de iniciativa comunitária – iniciada há mais de duas décadas e fortalecida após inundações que castigaram o Norte do estado, entre o fim de 2021 e o início de 2022 – que a proteção dos direitos do Rio Mosquito foi aprovada em Porteirinha. Antes, o Rio Laje, em Rondônia, era o único a ser reconhecido no Brasil em condição semelhante.
As ações em defesa da recuperação e proteção do rio em Porteirinha contaram com a participação efetiva de famílias agricultoras, organizações sociais e lideranças comunitárias. Entre as entidades envolvidas estão o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, a Associação Comunitária Casa de Ervas Barranco de Esperança e Vida (Acebev), a Articulação no Semiárido Mineiro (ASA Minas), a Cáritas Regional de Minas Gerais e a Cáritas Arquidiocesana de Montes Claros, que organizaram a campanha “Todos pelo Rio Mosquito”.
A lei sancionada em Porteirinha, com o mesmo texto aprovado em Serranópolis de Minas e ainda em discussão em Nova Porteirinha, determina que “ficam reconhecidos os direitos intrínsecos do Rio Mosquito, e de todos os outros corpos d'água e seres vivos que nele existam naturalmente ou que com ele se inter-relacionam, incluindo os seres humanos, na medida em que são inter-relacionados num sistema interconectado, integrado e interdependente no âmbito do município”.
O texto da lei cria ainda o “Comitê Guardião dos Direitos do Rio” integrado por representantes do poder público e da sociedade civil organizada, com a missão de participar de “todos os processos decisórios públicos ou privados que eventualmente versarem sobre o Rio Mosquito”.
Ainda segundo a Lei, ao menos a cada 12 meses, com contribuição do poder público, o Comitê Guardião deverá preparar “um relatório escrito conciso para informar comunidade sobre a saúde e estado do rio e planejamento das ações estratégicas de efetivação dos direitos reconhecidos”. Deverá também apresentar no relatório anual “proposta ao Poder Executivo para a implementação de ações de preservação e ou melhoria da vida do Rio Mosquito, bem como a execução de obras físicas impeditivas de sua degradação”.
Lei precisa valer na prática
A irmã Mônica Barros, fundadora da Associação Casa de Ervas Barranco de Esperança e Vida (Acebev), afirma que a luta da comunidade de Porteirinha pela recuperação do Rio Mosquito vem desde a década de 1980, e que aprovação de uma lei para respeitar os direitos do manancial e sua proteção representa uma “vitória da vida”, sobretudo no semiárido, que sofre com a falta de água.
“A lei é um grande conquista, primeiramente para garantia da vida das famílias que dependem do rio. Em segundo lugar, por preservar as matas ciliares e depois por assegurar a sustentabilidade ambiental”, afirma. “Mas não basta ter uma lei bonita, se ela não é respeitada. Temos que fazer com que tudo o que está previsto na lei seja cumprido – e até com punição para quem não a respeitar”, alerta a líder comunitária e religiosa. “Temos que fazer da lei um instrumento de proteção do rio.”
Atual diretora da Acebev, Helen Cavalcante Borborema reforça o alerta. “É preciso que haja regulamentação. Na verdade, a lei é um instrumento jurídico que, depois de regulamentada, pode contribuir para dar voz às necessidades e realidades do rio, podendo inclusive entrar no orçamento municipal, na construção de programas, projetos e muitas outras ações”, diz. “Mas a participação popular é fundamental para fortalecer esse instrumento no processo. Sabemos que os problemas são complexos e sistêmicos. Então, a luta continua”, assinala.
Desastres impulsionaram proteção do manancial
O assessor técnico da Cáritas Regional Minas Gerais, Rodrigo Vieira, revela que, entre o fim de 2021 e início de 2022, quando enchentes castigaram o Norte de Minas e a Bahia, o projeto para reconhecimento dos direitos do Rio Mosquito foi incrementado e começou a virar realidade. Ela lembra que foi realizada uma campanha de ajuda humanitária, “SOS Bahia e Minas Gerais”, dividida em ações emergenciais, de reconstrução e implantação de políticas preservacionistas.
“Durante um encontro de construção de um plano comunitário de gestão de riscos e emergências em uma das comunidades atingidas pelas cheias do Rio Mosquito, a população escolheu a revitalização – ou o cuidado da 'saúde do Rio' – como uma ação estratégica. Dentro da revitalização, foi apontada a necessidade de construção de uma lei que reconhecesse os direitos e protegesse o rio”, relata Vieira.
“Assim como a aprovação da lei, que só foi possível por meio da ação protagonista das comunidades, a sua implementação dependerá de uma metodologia participativa que vem sendo desenvolvida, em que a própria comunidade vai definindo as ações, quem vai fazer e como fazer”, explica.
“Que tenha vida perene”
Vereador em Porteirinha, Adão Custódio (PSB), um dos autores do projeto de lei, afirma que espera uma nova realidade para o Rio Mosquito com a legislação inovadora. “Espero que sejam implementadas ações que venham a dar vida ao rio e que seja perene, tendo suas nascentes e margens preservadas, livres de esgoto”, afirma parlamentar, que também é pequeno produtor na comunidade de Várzea Comprida, às margens do manancial.
“Sem água, não há vida. O rio é tudo para manter o desenvolvimento de várias atividades dos agricultores familiares ribeirinhos, do turismo, dos animais das atividades doméstica e humanas. O rio garante a sustentabilidade da região, que sofre com a escassez de água”, avalia o Custódio, que assinou o projeto de lei com o vereador Waldinei Batista, o Ney da Farmácia (PDT).
O coordenador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha, Elton Mendes Barbosa, lembra que há cerca de 20 anos foi iniciado pela entidade, em parceria com o Centro de Agricultura do Norte de Minas, o projeto “Diagnóstico socioeconômico e ambiental da bacia e sub-bacia do Rio Mosquito”, viabilizado com recursos da Fundação Interamericana (IAF). Foram financiadas atividades voltadas para a geração de renda, como a apicultura e o extrativismo, para permitir que os sitiantes pudessem se manter, sem a necessidade de desmatar as margens do rio.
Elton salienta que, dando sequência ao trabalho, a Cáritas e o sindicato somaram esforços na mobilização dos agricultores familiares em torno da preservação ambiental. “Diante disso, surgiu a ideia de elaborar o projeto de lei para o reconhecimento dos direitos do rio”, explica o coordenador do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Porteirinha.
Sua expectativa, como a de outros integrantes da comunidade, é que a lei tenha efeitos práticos. “A gente espera que, de fato, os direitos do rio sejam respeitados no sentido de garantir a sua preservação e que, com isso, ocorra uma melhoria da qualidade de vida das famílias em suas margens”, afirma Elton Barbosa.
“Caráter pedagógico”
O assessor Jurídico do Centro de Referência em Direitos Humanos de Montes Claros (CRH Norte), Aldinei Leão, ressalta o “caráter pedagógico” da legislação pioneira. “Estamos falando de uma lei que reconhece os direitos do rio, e que foi construída pelos entes humanos que pertencem ao rio. Que garante tanto os direitos do rio como a criação de instrumentos que permitem a participação desses entes na construção das políticas públicas que vão possibilitar a proteção do rio”, destaca.
O prefeito de Serranópolis de Minas, Max Vinicius Aguiar Martins (PT), lembra que o Rio Mosquito nasce dentro do Parque Estadual de Serra Nova e Talhado, na divisa entre seu município e Porteirinha. Perto da nascente, o rio é limpo e cristalino, atraindo turistas. Mas, após a área de preservação legal, o manancial vem sofrendo com a retirada da mata ciliar e o assoreamento, “cortando” em muitos pontos durante o período da estiagem no Norte de Minas, que vai de maio a setembro, com pico em julho e agosto.
Max Vinicius lembra que no município de Serranópolis, o Rio Mosquito conta com uma barragem construída pela Cemig na década de 1990, mas que está muito assoreada e não tem gerenciamento do poder público. “Hoje, a barragem tem apenas um guarda, que é servidor da MGS (empresa terceirizada pelo governo do estado)”, informa.
O prefeito de Serranópolis ressalta que o rio sofre com uma série de outros danos e agressões, como o assoreamento pelas voçorocas, tipo de erosão acelerado pelo desmatamento. E acrescenta que a cidade ainda não tem estação de tratamento de esgoto. A população local recorre a fossas, que contaminam o lençol freático.
Max Vinicius disse que sancionou a lei que reconhece os direitos do Mosquito no seu município com a expectativa de uma virada na questão ambiental. “A minha expectativa é de que o rio seja despoluído. Espero também que as matas ciliares sejam recuperadas para dar nova vida ao Rio Mosquito”, declara o chefe do Executivo municipal.
Em Nova Porteirinha, a prefeita Regina Freitas (União), afirma aguardar a aprovação pela Câmara Municipal do projeto de lei que reconhece os direitos do Rio Mosquito no município. “Vejo com muitos bons olhos essa iniciativa da preservação. Temos que unir as três cidades, Serranópolis, Porteirinha e Nova Porteirinha, em torno da lei que garante os direitos e a proteção do rio”, afirma Regina.
Pioneirismo
A Lei Municipal 2.251, de 15 de abril de 2024, aprovada por unanimidade pela Câmara de Porteirinha em 2 de abril, é considerada a primeira em Minas a reconhecer um ente não humano como sujeito de direitos. O texto que reconhece e protege o Rio Mosquito foi aprovado também na vizinha Serranópolis e está em tramitação em Nova Porteirinha, banhadas da mesma forma pelo curso d'água, parte da Bacia do Rio São Francisco. Inspirada na iniciativa, proposta semelhante tramita na Assembleia de Minas, na forma do Projeto de Lei 2.178/2024.
Projetos em nível estadual
Em âmbito estadual, a deputada Leninha Souza (PT) apresentou na Assembleia Legislativa a proposta de emenda à Constituição de Minas (PEC) dos Direitos da Natureza. “A proposta reconhece os direitos de toda a nossa ambiência, garantindo a proteção dos recursos naturais para que empreendimentos deletérios como a mineração, silvicultura e outros não sejam instalados sem levar em conta povos e comunidades tradicionais, os bens naturais de nosso estado”, observa. Ela também apresentou proposta que reproduz a legislação municipal de proteção ao Rio Mosquito. “O projeto de lei em âmbito estadual cria o precedente jurídico para que o rio tenha reconhecimento legal e social de, por exemplo, ser sujeito em uma ação judicial”, afirma. “O rio é de suma importância para os municípios de Serranópolis de Minas, Porteirinha e Nova Porteirinha. O Mosquito, como afluente do Rio Gorutuba, é a principal fonte de água para a produção da agricultura familiar naquela região”, destaca Leninha.