Mesmo estando entre os maiores produtores mundiais e com Minas Gerais no topo da produção nacional, o Brasil importou 2,25 bilhões de litros em equivalente leite em 2023, volume 68,8% maior que o adquirido no ano anterior, conforme dados do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea). O percentual representa um recorde em 23 anos. Somente em dezembro de 2023 foram 226,2 milhões de litros adquiridos, maior volume desde setembro de 2016 e 10,46% a mais que em novembro. O principal derivado lácteo importado pelo país no ano passado foi o leite em pó, com expressivo avanço de 83,4% sobre o balanço de 2022.
A maior parte do leite que entrou no país em 2023 veio, segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), da Argentina (46%) e do Uruguai (45%), integrantes do Mercosul, onde as operações são isentas da Tarifa Externa Comum (TEC) cobrada de países fora do bloco. Segundo a pasta, Paraguai contribuiu com 7%. A origem dos outros 2% não foi informada pelo governo. O grande boom das importações em 2023 causou um déficit comercial recorde de aproximadamente US$ 1 bilhão. Em Minas, especificamente, os produtores de Pompéu, na Região Central de Minas — município que concentra uma das maiores bacias leiteiras do estado — estão tendo que sacrificar o gado para pagar as contas.
Em 2024, a balança comercial de lácteos segue em alto patamar em relação ao volume importado em janeiro, mesmo registrando retração de 6%, revela a Secretaria de Comércio Exterior (Secex). Foram 206,5 milhões de litros em equivalente leite adquiridos no mês — alta de 36% em comparação ao mesmo período de 2023.
Dados públicos do Mapa colocam o Brasil como terceiro maior produtor mundial de leite, com média de 34 bilhões de litros por ano em 98% dos municípios brasileiros. Nesse contexto, Minas Gerais concentra em torno de 27% da produção nacional, de acordo com a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais (Seapa).
DÚVIDA
Porém, em entrevista ao Estado de Minas, o presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Leite (Abraleite), Geraldo Borges, diz não ser possível assegurar que o Brasil esteja ainda na terceira colocação. “Produzimos 35 bilhões de litros em 2021. No ano seguinte, caiu para 34 bilhões. A expectativa é que os dados consolidados de 2023 (quando forem divulgados) apontem uma nova queda na produção. Por outro lado, precisamos que ela aumente para garantir nosso abastecimento. Também temos que trabalhar para exportar os excedendes e, assim, trazer divisas para o país, além de consolidarmos nosso setor”, avalia.
“A redução no preço pago ao produtor, sobretudo a partir de maio de 2023, vem causando um desestímulo muito grande aos produtores, que estão trabalhando no vermelho”, afirma Borges, destacando que a diminuição no faturamento dos trabalhadores se contrapõe à manutenção das despesas de produção nas propriedades rurais do país. A reportagem questionou o Ministério da Agricultura se o dado público sobre a colocação do país quanto à produção leiteira está atualizado, mas não houve retorno.
SUBSÍDIOS
Embora possa parecer uma contradição a disparada nas importações de lácteos no Brasil — país agropecuário com destacado volume na produção leiteira — , o presidente da Abraleite lembra que produtores de todos os portes da Argentina ganharam, em 2023, uma injeção de capital do governo por meio de decreto. “Com isso, eles conseguem repassar ao Brasil um leite mais barato em relação àquele que produzimos e, mesmo tomando prejuízo, os produtores argentinos sobrevivem com o subsídio concedido para salvar a cadeia deles”, explica o presidente, que faz críticas à medida.
“Não podemos afirmar, mas isso nos parece uma prática desleal de comércio internacional, pois o Mercosul estabelece que as transações dentro do bloco devem ocorrer com igualdade de condições”, pondera Borges, acrescentando que o governo do Uruguai usou outra estratégia: renegociou as dívidas dos produtores, além de ter fornecido algumas benesses no ano passado.
“Historicamente, Argentina e Uruguai sempre foram grandes exportadores de derivados lácteos na América do Sul. Porém, a atual política tem gerado um desequilíbrio. Outro ponto é que alguns países asiáticos, como a China, e até da África interromperam suas importações de modo geral, o que incluiu lácteos do Mercosul. Com isso, Argentina e Uruguai direcionaram maiores volumes de lácteos para o Brasil com facilidade de logística e ausência de tarifação em decorrência das regras comerciais do bloco econômico. Vale dizer que a desvalorização da moeda argentina também influenciou as exportações do país”, lembra.
Líder nas importações em 2023, São Paulo gastou US$ 229 milhões com a aquisição de lácteos. A cifra corresponde a 26,8% do total importado pelo país e representa 64,8% de aumento em comparação com 2022. Na segunda colocação está Santa Catarina, com US$ 168 milhões. O valor compreende uma alta de 54,9% em relação ao ano anterior e participação de 19,7% no total do Brasil.
Vale dizer que, ao contrário do expressivo acréscimo nas importações em 2023, o volume exportado de lácteos, já inexpressivo, diminuiu 40% no ano passado em relação a 2022, totalizando 79 milhões de litros em equivalente leite, o menor desde 2019.
DESVALORIZAÇÃO
Depois de cair por seis meses consecutivos em 2023, o preço do leite captado em novembro subiu 1,3% na “Média Brasil”, chegando a R$ 1,99 o litro pago ao produtor. Esse valor, contudo, é 24,5% menor que o registrado em novembro de 2022. E, no acumulado de 2023, a queda ainda é de 23,8%, segundo o Cepea.
Até outubro, a desvalorização do leite esteve atrelada ao excesso de oferta, pois houve aumento da produção doméstica, além das importações crescentes. Mas a captação dos laticínios tem se desacelerado desde setembro, o que explica a mudança no comportamento dos preços em novembro, afirma o Cepea.
Já a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) aponta que, em dezembro de 2023, os preços pagos aos produtores de leite, na média nacional, fecharam dezembro cerca de 1% menor que em novembro, e 13,8% menores que no mesmo período de 2022.
“CAÓTICO”
O presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Pompéu, na Região Central de Minas, Paulo Henrique de Souza Lino, afirma que o cenário é “caótico” para os 400 associados no município e região, que enfrentam uma diminuição no faturamento em torno de 50%. “Temos uma das maiores bacias leiteiras no estado, com produção diária de 500 mil litros. Essa é a grande fonte de renda da cidade. O problema é que o preço que a gente recebe por litro não está sendo suficiente para manter o negócio de pé. Muitos produtores estão vendendo os animais para abatedouros com o objetivo de conseguir pagar as contas e pôr comida na mesa”, revela.
Dono de uma fazenda de 140 hectares, Paulo Henrique tem 115 vacas destinadas à produção e ao abastecimento de uma grande cooperativa de laticínios. Por enquanto, ele não teve que se desfazer de parte do gado, mas já dispensou a mão de obra de todos os prestadores de serviço, mantendo apenas três funcionários na propriedade. Ele conta que vendia a R$ 3,50 o litro do leite em 2022. A partir de 2023, passou a receber R$ 2. “Perdemos no valor do nosso produto, mas as despesas seguem as mesmas. Tá todo mundo com a corda no pescoço”, lamenta.
LINHAS DE CRÉDITO
O governo federal anunciou em dezembro do ano passado que o Conselho Monetário Nacional (CMN) aprovou duas linhas de crédito especiais para cooperativas de produtores de leite, com repasse de mais de R$ 700 milhões. Com isso, elas vão poder financiar os seus cooperados com juros de 4% para a agricultura familiar e de 8% para médios e grandes produtores. Logo, cada cooperativa pode acessar até R$ 20 milhões por linha de crédito, tendo prazo de 60 meses para o pagamento.
A medida, conforme o presidente da Abraleite, é bem-vinda, mas insuficiente para sanar a crise. “O valor é muito pouco. Os 2,25 bilhões de litros importados dão algo em torno de R$ 4,5 bilhões. Por isso, os R$ 700 milhões em linhas de crédito não vão resolver o problema. Sem falar que nem todos vão ter acesso. O valor serve para aliviar os produtores que estão endividados com as cooperativas. Aqueles que fornecem para empresas de laticínio não vão ser contemplados, e esse grupo representa 60% no Brasil”, pondera Geraldo Borges.