Uma ação que pode gerar a disputa pela ocupação de uma grande extensão de terras férteis e valorizadas, e que garantem acesso a um elemento vital para a produção: a água. Essa é a polêmica por trás do processo de demarcação das terras pertencentes à União nas margens do Rio São Francisco em Minas Gerais, iniciado em 2023 pela Superintendência do Patrimônio da União (SPU), por meio de sua representação no estado. A iniciativa começou com uma série de audiências públicas nas cidades ribeirinhas para tratar da questão.

 

A SPU afirma que, por enquanto, faz apenas estudos para saber os limites das áreas a serem demarcadas, não tratando da ocupação dos terrenos. No entanto, produtores rurais do Norte de Minas – região que será diretamente afetada pelo processo – já iniciaram uma mobilização, alertando temer que a demarcação seja altamente prejudicial para os proprietários das áreas próximas ao Rio São Francisco.

 



 

Entre as possíveis consequências, eles listam o comprometimento da produção de alimentos, a dificuldade de acesso à água, a fuga de empreendimentos rurais, a ocupação irregular dos terrenos por comunidades ribeirinhas e movimentos sociais e o aumento da degradação, com risco de comprometimento da sustentabilidade ambiental no chamado Rio da Integração Nacional, que nasce na Serra da Canastra, em Minas Gerais, e deságua no Oceano Atlântico entre Alagoas e Sergipe, banhando pelo seu caminho cinco estados.

 

Linha média de enchentes

 

A SPU informa que a demarcação das margens do Rio São Francisco faz parte do Plano Nacional de Caracterização, instrumento de acompanhamento e gestão das ações de demarcação de terras de domínio da União no país, em conformidade com a Constituição Federal. Também informa que a demarcação tem como referência a Linha Média das Enchentes Ordinárias (LMEO), de 1867, ou seja, criada há mais de 150 anos, ainda na época do Império.

 

 

Conforme a legislação, com base na Linha Média das Enchentes Ordinárias, que define os terrenos marginais dos rios, a faixa de domínio da União é demarcada com o uso de dados das enchentes com recorrência de três anos. Ou seja: uma vez a cada três anos, em média, a enchente atingirá o ponto delimitado, de onde a área não poderá ser explorada até o barranco do rio.

 

De acordo com a SPU, a demarcação será feita ao longo de 650 quilômetros (1,3 mil quilômetros, considerando as duas margens do rio), abrangendo 22 municípios ribeirinhos em Minas, desde a barragem de Três Marias até Juvenília, na divisa com a Bahia.

 

Cidades ribeirinhas

 

A Superintendência do Patrimônio da União iniciou as audiências públicas sobre a demarcação nas margens do São Francisco em setembro do ano passado, envolvendo proprietários rurais e representantes de comunidades ribeirinhas. Após a emissão de “editais convites”pela SPU-MG, reuniões ocorreram em Buritizeiro, Pirapora, Januária, Pedras de Maria da Cruz, Ibiaí, Ponto Chique e Manga, entre outros municípios.

 

Atualmente, os proprietários ribeirinhos devem manter a Área de Preservação Permanente (APP) da mata ciliar do Rio São Francisco, que vai a até 500 metros a partir do barranco do manancial, dependendo da largura do leito em cada ponto. Com a nova delimitação da faixa de domínio da União, segundo determina a legislação, deverá ser demarcada uma faixa de mais 15 metros além da área prevista na Linha Média das Enchentes Ordinárias, considerada Linha Limite dos Terrenos Marginais.

 

 

Cheia do Velho Chico inundou áreas no município de São Francisco, Norte de Minas: linha de enchentes influi na demarcação

Defesa Civil de São Francisco/Divulgação

 

Limites podem avançar quilômetros

 

Na prática, ainda não se sabe qual a extensão da área a ser demarcada. Mas produtores rurais do território cortado pelo Rio São Francisco no Norte de Minas afirmam que existem pontos em que a linha de demarcação poderá ir a até mais de cinco quilômetros a partir do leito do rio.

 

O tamanho da área a ser demarcada é questionado pela Sociedade Rural de Montes Claros, que afirma que acompanha as audiências promovidas pela SPU para discutir a questão.

 

“As plantas originadas da SPU disponibilizadas já há alguns anos (em 2015), demonstram as linhas da LMEO traçadas as margens do Rio São Francisco em diversos municípios, dando a entender que as demarcações já foram definidas mesmo antes da ocorrência das audiências públicas. Essas linhas em alguns casos, afastam-se consideravelmente das margens do rio”, alega a entidade.

 

“Estritamente legais”

 

Por sua vez, a Superintendência do Patrimônio da União informou, por intermédio da sua representação em Minas Gerais, que iniciou o trabalho de demarcação atendendo “estritamente” a lei. “A SPU-MG sempre desempenhou suas funções dentro dos limites estritamente legais, em respeito ao contraditório, à inviolabilidade de direitos e liberdades da nossa Constituição Federal de 1988”, informou.

 

“A demarcação do Rio São Francisco faz parte do Plano Nacional de Caracterização, concebido pela Unidade Central da SPU em Brasília, para identificar as áreas constitucionalmente de domínio da União Federal. Para isso, os imóveis públicos federais precisam ser caracterizados, ou seja, é necessário identificar onde estão delimitados”, acrescentou o órgão federal.

 

A superintendência argumenta que a de marcação está prevista em preceitos legais (Decreto-Lei 9.760, de 1946, e a própria Constituição), que determinam que “todos os rios federais navegáveis deverão ser demarcados”. Por outro lado, ressalta que a definição do trecho do Rio São Francisco em Minas Gerais, assim como o início dos trabalhos para delimitação do percurso “deveu-se a decisão judicial que fixou prazo para cumprimento desta obrigação”. Lembra ainda que os trabalhos visam ao cumprimento de uma determinação do plenário do Tribunal de Contas da União.

 

 

Área do Rio São Francisco em Minas que terá impacto com demarcações da União

Arte EM

Áreas de preservação ambiental

 

A Sociedade Rural de Montes Claros teme que, com a demarcação da faixa marginal do Rio São Francisco, as terras consideradas públicas venham ser ocupadas por comunidades tradicionais, impulsionadas por movimentos sociais. Alega também o risco de ocupação de Áreas de Preservação Permanente (APPs), que poderia causar sérios danos ao Rio da Integração Nacional.

 

A entidade ruralista diz não ver motivo para demarcação das terras, a não ser a “transferência” para as comunidades tradicionais. “Não há outra razão que justifique tais demarcações, senão transferir essas terras para comunidades tradicionais. Lembramos que essas terras têm ocupação legal centenária por parte de produtores rurais, não se tratando de terras devolutas”, argumenta a entidade.

 

A representação dos produtores rurais afirma que as margens do Velho Chico já sofrem danos por causa da ocupação irregular. “A legislação ambiental já está sendo desrespeitada pelas comunidades tradicionais, que, há pouco tempo, ocuparam as margens do Rio São Francisco com a destruição de matas ciliares e APPs. Quando se fala do uso racional dos recursos hídricos por parte dos produtores rurais, o uso das águas do rio é feito através de autorização legal, com outorgas emitidas e fiscalizadas pela ANA (Agência Nacional de Águas). Tudo o que se fizer contrário à legislação tem que ser contido e punido”, sustenta a Sociedade Rural de Montes Claros.

 

Acesso a água

 

A entidade afirma que a possível ocupação desordenada de Áreas de Preservação Permanente a partir de demarcação da faixa de domínio da União colocaria em risco a atividade produtiva na região do Rio São Francisco, podendo dificultar o acesso à água.

 

“Trata-se de uma questão grave, que coloca em risco a atividade rural desenvolvida nos municípios ribeirinhos ao longo do São Francisco. A princípio, a SPU afirma que o acesso ao rio poderá ser garantido, mas sabemos que o São Francisco, após cada temporada de chuvas, movimenta seus bancos de areia, havendo a necessidade de desassoreamento ou mesmo mudanças de locais de captação. Esse pode ser um ponto de conflitos. Podemos citar ainda o risco que corre o Rio São Francisco pela ocupação desregrada, que é a principal responsável pelo assoreamento, com consequente diminuição da calha e aumento das enchentes”, relata a Sociedade Rural de Montes Claros.

 

Fuga de investimentos

 

A entidade argumenta ainda temer conflitos na região, ocasionando perdas econômicas. “Uma das maiores riquezas do Norte de Minas são as águas do Rio São Francisco. A possibilidade de bloqueio ou restrições ao acesso às águas, com possíveis conflitos, traz intranquilidade, podendo gerar perda de empregos, desvalorização das terras, fuga de grandes empreendimentos e um freio ao desenvolvimento do Norte de Minas como uma região próspera no uso da agricultura irrigada, de grande valor para o estado de Minas Gerais e para o país”, sustenta.

 

A sociedade ruralista informou que pretende buscar entendimento com a União para evitar conflitos e problemas ambientais, diante da demarcação de terras pela SPU. “Nossa ação será sempre na busca de um diálogo adequado com a União, por meio de nossos representantes legais, como forma de equacionar a questão, inclusive com a possibilidade de destinação dessas áreas aos produtores rurais através da CDRU (Concessão do Direito Real de Uso)”.

 

E após a demarcação?

 

Já a SPU informa que busca apenas “determinar quais são os limites dos terrenos pertencentes ao patrimônio da União”, observando os requisitos técnicos previstos na legislação, sem entrar no mérito na ocupação das terras situadas na faixa demarcadas. “Reforçamos que a SPU/MG não está realizando qualquer discussão acerca da ocupação da área, incluindo as ocupações já realizadas por fazendeiros, agricultores ou comunidades tradicionais, bem como não fará, até que sejam concluídas todas as fases do procedimento, até a incorporação das possíveis áreas ao patrimônio da União.”

 

Segundo a superintendência, com a conclusão dos trabalhos técnicos, todos os interessados serão notificados, e “poderão oferecer quaisquer impugnações, apresentando documento ou fundamento que possa alterar” a área demarcada.

 

“Posteriormente, será necessário realizar a identificação, a delimitação e a incorporação do terreno marginal ao patrimônio da União, para somente após, promover ações de regularização necessárias nas áreas hoje ocupadas, ou realizar qualquer nova destinação, se for o caso. Assim, cada situação concreta será analisada de maneira individualizada, conforme o caso concreto e dentro do legalmente determinado. Qualquer projeto de regularização ou destinação deve ser precedido pela determinação da área de fato pertencente à União, passando pela fase de recursos, não sendo possível qualquer análise ou construção de projeto previamente a essa delimitação”, informou o órgão.

 

Quanto ao alerta de ruralistas sobre os riscos ambientais para o Rio São Francisco após a demarcação da faixa de domínio da União, a SPU afirma apenas que o assunto não é sua competência. “A demarcação das áreas constitucionais da União não se confunde com áreas de proteção ambiental. As áreas de proteção ambiental abrangidas, seja por lei federal, estadual ou municipal, continuam protegidas. A SPU não tem competência para legislar sobre questões ambientais”, informou.

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