Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) produzem carne de frango, boi e porco cultivada, em escala laboratorial e com objetivo de pesquisa. De acordo com a especialista em biotecnologia e uma das coordenadoras da pesquisa na UFMG, Érika Cristina Jorge, Minas Gerais têm estrutura e tecnologia para tornar a carne de laboratório um produto comercial em todo o Brasil. Mas faltam recursos financeiros para que a carne feita em laboratório seja produzida em larga escala, fase essencial para que o produto seja fiscalizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e seja comercializado.

 

 

“A gente está tentando conseguir recursos, financiamento, para começar a produzir em larga escala, porque tudo o que a gente produziu até agora, nesses seis anos, foi em escala de laboratório. Faltam recursos financeiros tanto público quanto privado no sentido da produção em larga escala e comercializado. É só a partir do produto em larga escala que a gente também vai poder entrar com ele na Anvisa e no Mapa. A gente sabe que a Anvisa já está preparada. Já está sabendo que isso acontece, mas eles esperam que a gente entregue um produto para que eles avaliem se aquele produto pode ser comercializado ou não. E, até o momento, ninguém conseguiu fazer uma carne cultivada chegar nesse ponto aqui no Brasil, porque, de fato, faltam bastante recursos para a área”, esclarece a especialista em biotecnologia.

 

 

Érika Cristina Jorge coordena, com a professora Luciana de Oliveira Andrade, a pesquisa sobre carne cultivada na UFMG. Conforme a pesquisadora, a carne de laboratório é feita a partir de uma biópsia, o que possibilita que nenhum animal tenha que ser abatido. A partir desse processo, as células-tronco são extraídas e cultivadas no laboratório. Ao todo, 20 pesquisadores estão envolvidos na pesquisa, sendo cinco doutores e três PHD. “A partir de um pequeno pedacinho de músculo, uma biópsia mesmo, eu consigo, no laboratório, isolar as células-tronco que vivem no tecido muscular e fazer essas células crescerem em condição de cultura e se diferenciarem em um músculo novo. Para conseguir fazer um pedaço de carne, não bastam células. Junto das células, a gente tem que colocar um biomaterial, algum materialzinho, que permita criar a estrutura tridimensional da carne”, detalha Erika Jorge.

 



 

A pesquisa voltada para carne cultivada no estado começou a partir de uma parceria da UFMG com o Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG) em 2018. Erika Jorge esclarece que, a princípio, ela pesquisava sobre o ganho de massa muscular e já dominava a técnica de enxertia, mas os pesquisadores do Cefet tinham desenvolvido um biomaterial e queriam testar uma nova possibilidade. “O projeto teve início com uma iniciativa de pesquisadores do Cefet-MG a partir de um biomaterial. Eles me procuraram para testar esse biomaterial com as células musculares que eu já trabalhava anteriormente. A gente testou as células nesse meu material e elas funcionaram super bem e a gente conseguiu produzir um bifinho de frango com isso. Então essa parceria na pesquisa permitiu a gente começar nessa área”, lembra a pesquisadora.


“Gordura de laboratório” para dar sabor ao produto

 


Ao longo de seis anos, a pesquisa passou do trabalho com células modelo para células bovinas, de frango e suínas. Com o processo feito em laboratório pelos pesquisadores da UFMG, o alimento consegue ter todas as propriedades da carne, como gosto, textura e os nutrientes. Segundo a especialista em biotecnologia, Erika Jorge, uma evolução que a pesquisa conseguiu foi desenvolver a gordura cultivada.

 

“A gordura é uma coisa interessante porque além da carne cultivada, a carne para ser saborosa, ela precisa ter gordura. Então, não pode ser só músculo, precisa ter a gordurinha, por isso que a gente gosta da picanha. A gordura também pode ser produzida a partir de células-tronco e isso vai ser misturado. A nossa ideia é misturar essa gordura ao músculo para produzir, e nesse esquema que a gente trabalha, nesse sistema de produção de carne cultivada, eu posso colocar a quantidade de gordura que eu quiser. Então, se eu quiser comer uma picanha, eu vou colocar um pouco mais de gordura cultivada; se eu quiser produzir uma carne mais magra, eu coloco menos, de uma forma que eu consiga controlar facilmente a quantidade de gordura”, detalha a pesquisadora. Nesse sentido, Erika Jorge entende que a carne cultivada poderia agradar tanto os vegetarianos quanto as pessoas que gostam de consumir carne. Além disso, a pesquisadora vê a gordura cultivada como um produto à parte e que poderia completar outros já existentes.

 

 

“A gordura cultivada é um outro produto por si só, porque, por exemplo, os produtos plant-based que já estão no mercado, como o hambúrguer de soja e outros produtos à base de soja, o sabor deles ainda é problemático para um alcance maior do mercado consumidor. Então, quem não é vegetariano não gosta de comer um bife de soja por causa do sabor. Quem sabe se a gente, por exemplo, misturar uma gordura cultivada a um produto plant-based, será que a gente não consegue melhorar o sabor deste produto? E ainda assim, os vegetarianos poderiam se interessar e comer, porque é um produto feito à base de não sofrimento”, salienta.

 

Conforme registra o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), ainda não existe nenhum produto de carne cultivada, importado ou nacional, autorizado para comercialização no Brasil. No mundo, poucos países produzem e comercializam a carne de laboratório. No entanto, para a especialista em biotecnologia, Erika Jorge, a tecnologia está começando a ser fruto do interesse de pesquisadores de vários países.


Minas é destaque, mas há desafios

 

 

“Singapura tem carne cultivada já, então eles já produzem carne cultivada e as pessoas já podem comer o produto. Nos Estados Unidos, em São Francisco, também já tem uma empresa que produz carne cultivada e vende para um restaurante. Então, já é uma realidade. E o Brasil, como um dos maiores produtores de alimentos do mundo não pode perder essa oportunidade, porque é uma tecnologia de produção de um alimento rico em proteínas. Mas a gente não pode deixar essa tecnologia ficar na mão de outros países, porque pode ser que no futuro a gente precise dela e a gente não desenvolveu, como os outros países estão fazendo”, salienta Erika Jorge.

 

A pesquisadora explica que, até o momento, a produção é voltada para bifes em placas de cultura. Ainda em pequena escala, também chamada de escala de laboratório. O próximo passo da pesquisa é desenvolver, crescer e levar a tecnologia para os biorreatores. “É a mesma ideia de cerveja artesanal, mas ao invés de colocar a levedura no sistema, a gente quer colocar células-tronco de músculo e produzir, começar a produção disso em larga escala, sair da escala laboratorial e aumentar. Então a gente está nesse passo aí de tentar levantar mais recursos, mas está muito difícil. A gente não tá conseguindo muito recurso, nem público e nem privado, para fazer muitas coisas”, explica.

 

 

Para Erika Jorge, a falta de recursos financeiros no setor em Minas Gerais trava o desenvolvimento da pesquisa. Em 2021, os pesquisadores da UFMG receberam um investimento de 250 mil dólares do ‘The Good Food Institute’, uma instituição sem fins lucrativos que promove alternativas à base de plantas e células aos produtos de origem animal. No entanto, desde então, eles não tiveram outro investimento tão expressivo.

 

“Ainda é uma tecnologia muito inicial, mas a gente sente que no Brasil a gente tem condições de tornar um produto em pouco tempo, desde que a gente tenha apoio financeiro para o desenvolvimento da tecnologia. De 2018 para cá, a gente já se desenvolveu bem. Com pouco tempo, a gente conseguiria lançar um primeiro produto brasileiro, mas infelizmente a gente tem já tentado alguns editais de financiamento e ainda não tem tido sucesso, porque é uma concorrência grande. Muitos projetos. Mas estamos tentando”, reforça.

 

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O centro de pesquisa da Embrapa Suínos e Aves, em Concórdia, Santa Catarina, também estuda a produção de carne cultivada. Por enquanto, a carne cultivada mais avançada desenvolvida por eles é a de frango. Para Maira Peixoto, membro da pesquisa, os principais desafios para o avanço da tecnologia no país são os altos investimentos necessários para a produção e os processos regulatórios. “Os custos ainda são elevados, principalmente devido ao uso de reagentes caros, geralmente vindos das áreas médica e farmacêutica, sendo mais voltados para o cultivo celular do que para o setor alimentício. Além disso, os processos regulatórios exercem um papel fundamental na consolidação do setor de carne cultivada no Brasil. A criação de um marco regulatório favorável à inovação e ao investimento, inspirado nas experiências regulatórias de outros países, é essencial para a velocidade de desenvolvimento do mercado brasileiro”, avalia.

 

De acordo com a pesquisadora de Santa Catarina, outro desafio é a aceitação do produto pelos consumidores. Maira Peixoto acredita que muitas pessoas ainda têm resistência relacionada a alimentos produzidos em laboratório. “Para alguns, esses produtos não parecem ‘verdadeiros’, e a aceitação pode estar associada a questões éticas, culturais e até mesmo religiosas. Mas quando os benefícios da carne cultivada são apresentados com clareza e sem preconceitos, essa percepção do público melhora.”

*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Oliveira

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