O imposto seletivo incluído no texto da reforma tributária é tema de debate entre produtores de cachaça e setores da sociedade civil. Conforme o Instituto Brasileiro de Cachaça (Ibrac), o texto atual da reforma tributária vai na contramão de medidas que protegem a bebida etílica, que é patrimônio histórico e cultural do Brasil, como o acordo que está prestes a ser ratificado entre o Mercosul e a União Europeia e que protege a exportação da cachaça. No entanto, profissionais da área da saúde alertam sobre a importância de desincentivar o consumo de produtos que fazem mal à saúde, um dos objetivos do imposto.
Minas Gerais é o estado que possui o maior número de cachaçarias registradas, responsável pelo equivalente a 41,4% dos estabelecimentos brasileiros. Na Região Norte, Salinas é a cidade com o maior número de estabelecimentos da aguardente. O município concentra mais de 20 alambiques clássicos. Os dados são do levantamento realizado em 2023 pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para o Anuário da Cachaça publicado em 2024.
O texto da reforma tributária foi votado na última quarta-feira (11/12), na comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal (CCJ). Bebidas açucaradas e armas foram retiradas da lista de itens taxados no imposto seletivo, enquanto as bebidas alcoólicas continuam no texto.
O presidente da Associação Nacional dos Produtores e Integrantes da Cadeia Produtiva e de Valor da Cachaça de Alambique (Anpaq) e presidente da comissão técnica de Cachaça de Alambique da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais (Faemg), Roger Sejas, acredita que a promoção de uma política fiscal que puna os produtores de bebidas alcoólicas pode fazer com que pequenos produtores vão para a clandestinidade. O gestor critica, principalmente, a parte do texto que define um imposto maior conforme o teor alcoólico.
“Quando você faz um incremento de uma regra tarifária que puna a bebida alcoólica porque ela, de certa forma, tem um grau de nocividade, que só existe no consumo exagerado, desordenado ou na desconformidade com a bebida, você está prestigiando e promovendo até mesmo o mercado ilegal das bebidas, porque já é apertado cumprir o arrocho fiscal que o governo tem em relação aos produtores. Com mais esse tributo, muitos produtores de pequeno porte podem acabar desistindo da atividade e prejudicando todo o ecossistema produtivo”, detalha Sejas.
No entanto, conforme a nutricionista da Área Técnica de Alimentação, Nutrição, Atividade Física e Câncer, do Instituto Nacional do Câncer (INCA), Maria Eduarda Diógenes, não existe uma dose segura de álcool. Diógenes explica que tanto bebidas com alto teor alcoólico quanto bebidas amplamente consumidas pela população representam um desafio para a saúde pública.
SAÚDE X ECONOMIA
“Quanto às bebidas alcoólicas, a cobrança do imposto seletivo é fundamental para desestimular o consumo deste produto reconhecidamente nocivo à saúde. As evidências científicas, acumuladas ao longo dos anos, demonstram claramente que o consumo de bebidas alcoólicas está entre os principais fatores de risco para várias doenças, entre elas, o câncer. No Brasil, a cada hora morrem 2 pessoas por causas plenamente atribuíveis ao consumo de álcool. Para o câncer, é fundamental esclarecermos que não há níveis seguros de ingestão”, ressalta a nutricionista.
Diante do cenário, a Associação Nacional dos Produtores e Integrantes da Cadeia Produtiva e de Valor da Cachaça de Alambique e o Instituto Brasileiro de Cachaça, junto a outras entidades do setor lançaram um manifesto que pede a retirada do parágrafo 4º, do art. 419, do Projeto de Lei Complementar 68/2024. Os produtores reivindicam que uma mesma alíquota ad valorem e a mesma alíquota específica (ad rem) seja aplicada, independentemente do teor alcoólico ou do tipo da bebida alcoólica.
A alíquota ad valorem é baseada no valor do produto, como um percentual fixo do preço de venda. Já a tributação específica é baseada na quantidade de álcool puro, calculado pelo teor alcoólico da bebida multiplicado pelo tamanho do vasilhame. O setor acredita que a cobrança específica em relação ao teor alcoólico pode beneficiar uma concorrência desleal entre bebidas, como a cerveja e a cachaça. O presidente do Instituto Brasileiro de Cachaça (Ibrac), Carlos Lima, sente ainda que a cobrança de tributos diferenciados em relação ao teor alcoólico pode promover o consumo excessivo de bebidas com menor teor alcoólico, o que representa um risco para a saúde do consumidor.
“Quando a gente olha o consumo de bebidas alcoólicas hoje no Brasil, a cerveja representa mais de 90% do consumo, já a cachaça e outros destilados, por sua vez, menos de 10%. Se o intuito do imposto seletivo era combater o consumo excessivo de álcool, ele deveria estar focado em coibir o consumo de cerveja e não incentivar o consumo, porque a gente está olhando a quantidade de álcool que é consumida pela população. Logo, é por isso que a gente está preocupado com o texto que foi aprovado”, reforça Lima.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Cachaça (Ibrac), a bebida etílica possui 40% de teor alcoólico. No entanto, ao usar como referência uma dose padrão de consumo de 14 gramas, tanto quem beber 350 ml de cerveja, quanto 150 ml de vinho com teor alcoólico de 12% ou 40 ml de cachaça vão consumir as mesmas 14 gramas de álcool. O Ibrac ainda ressalta que o brasileiro consome mais de 80 litros per capita de cerveja por ano, enquanto o índice dos destilados, incluindo a cachaça, é de apenas 4,1 litros por pessoa. Nesse sentido, o instituto entende que o que é prejudicial é o consumo excessivo de álcool.
“A gente não concorda com esse tratamento diferenciado entre as bebidas alcoólicas. O Brasil está andando na contramão. Enquanto a União Europeia faz um movimento para reconhecer e valorizar a cachaça, o país, por outro lado, acaba de aprovar uma legislação que faz com que a cerveja pague menos imposto e vai fazer com que a cachaça pague mais imposto”, enfatiza Lima.
Benefícios diplomáticos
As negociações do acordo Mercosul União Europeia se encerraram na sexta-feira (6/12) com a aprovação do texto pelos países participantes. O próximo passo é a ratificação do acordo no Parlamento Europeu e no Congresso Nacional brasileiro e de outros países da América Latina. O acordo tem duas questões importantes: a proteção mútua de denominações geográficas e a redução das alíquotas de importação para entrada da cachaça na União Europeia.
O setor da cachaça comemora o avanço dessas negociações. Para o presidente do Instituto Brasileiro de Cachaça, Carlos Lima, o primeiro grande avanço é a proteção da denominação cachaça na União Europeia. Até o momento, a cachaça é protegida nos Estados Unidos, México, Colômbia e no Chile.
“Com esse acordo, somente os produtores brasileiros poderão fazer uso da denominação cachaça na União Europeia. A gente vê hoje que, no continente europeu, existem outros países que produzem destilados de cana-de-açúcar e utilizam indevidamente a denominação cachaça para esses produtos. Então, acho que o primeiro ganho é esse: a ‘cachaça’ é do Brasil! É a garantia de que somente o Brasil e os produtores brasileiros poderão fazer uso da denominação cachaça”, detalha Lima.
Conforme o presidente da Ibrac, por ser um acordo, existe uma contrapartida. Com isso, o Mercosul também vai reconhecer indicações geográficas do bloco europeu. “Aí você tem uma lista grande de indicações geográficas. Do nosso lado, não será apenas a indicação de cachaça que será protegida, mas acho que essa é a indicação geográfica mais emblemática que a gente tem, porque é o nosso destilado verde amarelo. É uma bebida que tem mais de 500 anos de história. Uma bebida que acompanha diretamente a história do Brasil.”
O outro benefício comemorado pelo setor é a desgravação tarifária das alíquotas de importação para entrada da cachaça na União Europeia. Existem duas posições tarifárias específicas: uma relacionada à cachaça engarrafada, a cachaça já pronta para consumo; a outra é a cachaça de vasilhames, acima de dois litros — a granel.
Para Carlos Lima, com o acordo, a cachaça engarrafada vai chegar até uma alíquota zero de importação na União Europeia, em 4 anos. Já a cachaça envasada a granel terá uma quota de 2400 toneladas, com intra-quota zero e volume crescente em 5 anos. “Essa desgravação traz uma maior competitividade para a cachaça dentro do mercado europeu, uma vez que você vai ter uma redução da alíquota de importação para entrada do produto no mercado”, explica Lima.
Minas Gerais é um dos maiores exportadores de cachaça do Brasil, atrás apenas de São Paulo. Conforme dados do ComexStat, os produtores mineiros exportaram cerca de 370 mil litros no ano passado. Já São Paulo, que lidera a lista, exportou 4 milhões de litros.
Patrimônio cultural
A cachaça é considerada patrimônio histórico e cultural do Brasil desde 2016, quando o Congresso Nacional reconheceu o título em todo o território nacional. O presidente da Comissão Técnica de cachaça de Alambique da Faemg, Roger Sejas, também é um pequeno produtor de cachaça em Jeceaba, na Região Central de Minas Gerais. Em sua propriedade, Sejas tem todo o processo da produção do produto.
Roger Sejas produz cerca de 10 mil litros de cachaça por ano. “A cachaça de Alambique, ou mesmo a cachaça comun, ela tá aí para contar a história de um país, para unir pessoas, para criar laços e criar histórias. Então, é para isso que é feita a cachaça. A cachaça não é para você viciar, para que você fique um moribundo bêbado na rua; não é para isso e nós temos essa preocupação de versatilidade do produto. A gente tem essa preocupação de criar essa forma de ingerir álcool com mais inteligência e de forma mais qualitativa. Beber menos e beber com maior qualidade”, finaliza.
*Estagiária sob supervisão do subeditor Rafael Oliveira
“Com esse acordo, somente os produtores brasileiros poderão fazer uso da denominação cachaça na União Europeia. A gente vê, hoje, que existem outros países que produzem destilados de cana-de-açúcar e utilizam indevidamente a denominação. Então, o primeiro ganho é esse: a ‘cachaça’ é do Brasil!”
Carlos Lima
Presidente do Instituto Brasileiro de Cachaça (Ibrac)