O Brasil é responsável por cerca de 8% do consumo global de fertilizantes, de acordo com dados de 2022 apresentados pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). No entanto, 80% desses produtos utilizados no país são importados, o que deixa o agronegócio brasileiro vulnerável. Na busca por formas de amenizar essa dependência do mercado estrangeiro, o Plano Nacional de Fertilizantes sugere a busca por fontes sustentáveis. Uma das alternativas é o uso de lodo de esgoto como matéria-prima para a produção.
O aproveitamento de resíduos sólidos urbanos, como o lodo de esgoto, é uma solução considerada promissora pelos engenheiros agrícola e ambiental Mateus Pimentel de Matos, também doutor em saneamento, e Ivan Célio Ribeiro Andrade, doutor em fertilidade do solo e nutrição de plantas. Ambos afirmam que esse tipo de resíduos são ricos em nutrientes e a utilização deles “representa uma oportunidade de fechar o ciclo de produção e consumo, alinhando-se aos princípios da economia circular.”
Os engenheiros explicam que o lodo é proveniente do processo de tratamento do esgoto e é composto de sólidos que sedimentaram, além de “microrganismos que se reproduziram e cresceram utilizando a matéria orgânica e assimilando nutrientes”.
Vantagens
Para explicar o potencial do lodo como matéria-prima para fertilizantes, Mateus e Ivan citam uma pesquisa realizada na Universidade Federal de Lavras (UFLA), de autoria de Henrique Louregiani. A dissertação demonstra que o uso do fertilizante orgânico produzido com resíduos da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) da própria universidade no cultivo de capim-elefante teve uma produtividade agrícola superior ao plantio que utilizou de adubo químico.
Os engenheiros também apontam como o aproveitamento do lodo é positivo visto que a produção desse resíduo deve aumentar com o passar dos anos em decorrência do Novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei 14.026/2020). A legislação estabelece metas para a universalização dos serviços de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto até 2033, o que, para Mateus Pimentel e Ivan Célio Ribeiro, “implicará na necessidade de implementação de novas ETEs ou expansão das atuais, resultando em maior produção de lodo que precisará ser adequadamente disposto.”
Os engenheiros também destacam que os fertilizantes criados com lodo trazem benefícios ao solo, uma vez que são ricos em matéria orgânica, o que contribui para o aumento da retenção de água no solo, ajuste do pH e redução do risco de contaminação por substâncias tóxicas.
Os especialistas também reforçam a importância de fertilizantes alternativos, como esse, frente a dependência que o Brasil tem de produtos importados. “Essa vulnerabilidade, agravada pela escassez de reservas minerais no país e por eventos globais como a pandemia de COVID-19 e a guerra na Ucrânia, tem impulsionado a alta dos preços dos insumos agrícolas e ameaçado a competitividade do agronegócio brasileiro, um dos principais pilares da nossa economia”, argumentam.
Além disso, a engenheira sanitarista da Unidade de Serviço de Desenvolvimento Operacional, Qualidade e Energia da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), Frieda Keifer Cardoso, corrobora ao afirmar que o processo de produção dos fertilizantes orgânicos gera empregos em áreas variadas, como biólogos, engenheiros e outros profissionais que compõem a equipe técnica.
Esse tipo de fertilizante também reduz o custo no transporte de lodo das ETEs até os aterros sanitários, os quais também podem ter a vida útil aumentada.
Projeto em BH
Em Belo Horizonte, o lodo como matéria-prima para fertilizante está caminhando para se tornar realidade. Há um projeto em andamento sobre esse uso, que além de contemplar as diretrizes do Plano Nacional de Fertilizantes, proporciona um destino mais ambientalmente correto para resíduos sólidos urbanos, que costumam ser descartados em aterros sanitários.
O projeto é uma parceria entre a Copasa, a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), a Transplantar Tree, empresa especializada na prestação de serviços ambientais, e a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). O convênio entre os realizadores foi assinado em 2022.
Nomeado Compost Tree, o projeto prevê a produção de um fertilizante orgânico cuja matéria-prima é o lodo de estações de tratamento de esgoto, fornecido pela Copasa; resíduos de podas urbanas, da Cemig; e dejetos bovinos. Frieda Keifer Cardoso, idealizadora do projeto, explica que teve essa ideia depois de ver um processo parecido no Japão, onde visitou em iniciativa da Agência de Cooperação Internacional Japonesa (Jica).
A engenheira sanitarista explica como a produção funciona: “O lodo de esgoto das ETEs vão para a usina de compostagem, lá ele é transformado em biossólido através de incidência de raios solares. Paralelo a isso, as podas urbanas montam as ‘camas’ do curral, em que os animais vão defecar, urinar e todos esses dejetos vão ajudar a manter a relação de carbono e nitrogênio e outros nutrientes que o solo precisa.” Em seguida, a engenheira explica que as “camas” do curral vão ser levadas ao pátio de compostagem, onde serão formadas leiras.
Depois, o biossólido, que já não é lodo mais, é incorporado nesse material pré-compostado. Essa mistura ficará exposta ao sol e será monitorada. “Tem todo o controle de temperatura, umidade e aeração com maquinários. É um processo simples, porém, se ele não for acompanhado 24 horas, o nosso fertilizante orgânico não vai ter a devida qualidade”, explica Frieda Keifer.
Ainda de acordo com ela, para a produção do Compost Tree é utilizada uma proporção de um para um. “Se temos 10 toneladas de lodo, utilizaremos 10 toneladas de resíduos de poda triturados. No final do processo de compostagem, teremos aproximadamente 10 toneladas de fertilizante orgânico”, afirma.
Durante o processo de compostagem, de lodo para biossólido, o material passa pelo devido tratamento. Segundo a idealizadora da Compost Tree, são cerca de 90 dias de controle e adequação aos parâmetros para que o fertilizante seja aprovado. Entre as etapas de tratamento, a engenheira sanitária destaca a “filtração” das composições do esgoto, o que garante que os resíduos possam ser decompostos e que o tratamento habitual do esgoto seja de fato realizado. Esse “filtro” é feito com a retirada de areia, por meio dos desarenadores, e a separação de plásticos e outros objetos sólidos inadequados, por meio do gradeamento.
Além disso, os engenheiros Mateus Pimentel e Ivan Célio Ribeiro apontam que o uso agrícola desse material é previsto e regulamentado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). “Segundo as diretrizes da resolução, para que o lodo possa ser utilizado no solo, o resíduo deve passar por algumas etapas de tratamento, que envolvem a sua secagem, digestão e higienização (para redução de riscos sanitários), devendo também observar os limites de elementos químicos aplicados no solo”, explicam ao Estado de Minas.
Em andamento
Frieda diz que o Compost Tree passou em todos os parâmetros que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento exige. Além disso, ela conta que ele já está sendo utilizado internamente, inclusive em áreas da prefeitura, como na produção de mudas no Jardim Botânico da Fundação de Parques Municipais e Zoobotânica (FPMZB).
A próxima etapa é o registro do produto junto ao Mapa e, em seguida, o lançamento do fertilizante. Ainda não há uma data certa para que o produto seja disponibilizado, mas a expectativa é para o segundo semestre deste ano.
Apesar de o Compost Tree ainda não ter sido lançado, no início deste mês, a Copasa recebeu o Prêmio de Intraempreendedorismo, na categoria Equipe, da Aevo, empresa de gestão da inovação e estratégia corporativa.
Outras matérias-primas
Além do lodo de esgoto, Mateus Pimentel de Matos e Ivan Célio Ribeiro Andrade citam outros subprodutos das indústrias agroindustriais que são ricos em nutrientes e podem ser utilizados como matéria-prima para fertilizantes. Entre eles estão: cascas e pergaminho do fruto do café; cascas de ovos; escória de alto-forno; e gesso.
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Os especialistas também apontam como não só o material sólido de resíduos pode ser utilizado. Eles dizem que águas residuárias, de diversos processos, também são uma alternativa. Alguns dos processos que resultam em líquido passível de ser utilizado na produção de fertilizantes são: o processamento da cana-de-açúcar, que produz a vinhaça; tratamento de esgoto doméstico; suinocultura e bovinocultura; e processamento do leite.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Regina Werneck