Todas as vezes que se debate políticas públicas e papel do Estado emerge a tensão entre oferecer soluções imediatas para problemas sociais ou promover a autonomia individual como caminho para a sustentabilidade. Polêmica ilustrada pelo provérbio popular que acerta ao afirmar que, dar um peixe a uma pessoa ela se alimentará por um dia, enquanto, ensinando-a a pescar, ela se alimentará por toda a vida. Entretanto, nada afasta a certeza de que são muitas as situações em que precisamos começar dando o peixe, inclusive enquanto ensinamos a pescar.

 

José “Pepe” Mujica, que conseguiu chegar ao fim da vida vendo um discípulo seu ser eleito presidente do Uruguai, vai além quando critica os que dizem que não se deve dar o peixe, mas ensinar a pessoa a pescar por se esquecerem que “quando destroçamos seu barco, roubamos sua vara e tiramos seus anzois, é preciso começar dando-lhes o peixe”. O mesmo serve para quem, por razões estruturais e do acaso de se ter nascido na pobreza, nunca sequer teve nenhum dos instrumentos necessários.

 



 

É aí que o exemplo bem-sucedido do Uruguai de Mujica se destaca. Entre as capitais sul-americanas, Montevidéu foi a que impulsionou o país a alcançar o maior PIB per capita da região nos últimos anos, e fez isso com e através de justiça social.

 

Tal fato tem a ver com o que observadores do mundo todo ressaltam sobre uma peculiaridade saudável da política uruguaia: o país platino tem conseguido atravessar incólume a última década de radicalismo político que se espalhou pela América do Sul e em grande parte do mundo. A eleição recente foi uma demonstração clara disso.

 

No contexto em que o Uruguai se destaca por seu equilíbrio, podemos ver como a lógica de dar o peixe enquanto ensina a pescar também pode ser vista na forma com que o país consegue sintetizar diferentes abordagens ideológicas em relação às políticas públicas. A política moderada do país, onde a eleição nacional foi disputada com debates de alto nível entre os principais contendores, reflete uma convivência produtiva entre esses dois paradigmas: políticas públicas que oferecem alívio rápido às necessidades da população, enquanto criam condições para o fortalecimento da autonomia individual. Esse modelo político, ao evitar a radicalização, permite ao país avançar em estabilidade e maturidade democrática, mesmo em tempos de crispação global.

 

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Yamandú Orsi, recém-eleito presidente do Uruguai, enfrenta o desafio de equilibrar a continuidade do legado de José Mujica com as demandas de um cenário político e econômico em transformação. Como discípulo do ex-presidente, Orsi herda um compromisso com políticas voltadas para inclusão social e desenvolvimento sustentável, ao mesmo tempo em que precisa lidar com os que farão oposição a seu governo. Especificamente no que diz respeito às complexas relações comerciais no Mercosul, o governo de Orsi apresenta uma oportunidade para melhoria de nossas interconexões como vizinhos. Sua vitória representa também uma expectativa por renovação e adaptação às necessidades emergentes do país.

 

Entre os principais desafios de Orsi está o fortalecimento ainda maior da economia uruguaia, que depende de exportações agrícolas, diversificar sua base econômica, reduzir desigualdades regionais e enfrentar a criminalidade insistente. Inspirado pela simplicidade e pragmatismo de Mujica, ele terá que encontrar maneiras criativas de preservar a estabilidade democrática do Uruguai em um contexto global de irrazoabilidade política. Além disso, sua gestão será acompanhada de perto por uma população exigente, que espera um governo também comprometido com uma abordagem inovadora para os desafios do século 21.

 

Ao longo dos anos, Mujica se tornou grande incentivador da moderação na política interna, apostando na negociação para equacionar diferentes abordagens ideológicas em relação às políticas públicas. Orsi busca seguir seus passos. Se, tradicionalmente, a esquerda é mais favorável a intervenções diretas e soluções imediatas para aliviar desigualdades, como programas de capacitação e inclusão social, a direita, por outro lado, tende a ser refratária a essas intervenções, enfatizando que o foco deve estar na autonomia individual, defendendo que o papel do Estado deve ser reduzir barreiras e “não atrapalhar a pesca” com regulações ou assistencialismo.

 

Com negociação e tolerância se consolida uma forma de ação política que dá liga e sabor aos debates sociais, de maneira semelhante à palavra “mujica, pirão mole exótico do norte do Brasil que se refere tanto a um prato típico quanto a uma técnica de engrossar caldo de peixe com verdura e farinha. Palavra que tem origem na língua tupi e que combina bem com o homônimo sobrenome do líder uruguaio.

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