A religião nunca esteve tão presente em campanhas eleitorais como agora. Talvez se pudesse dizer que Deus e o diabo estão nos comícios. O presidente Bolsonaro vem participando há tempos das marchas para Jesus com a recente participação ativa da primeira-dama Michelle, que é evangélica. Lula acaba de afirmar, em comício, que não precisa de pastores e padres para falar com Deus. Basta fechar-se no quarto para conversar horas com Deus. No dia seguinte a essa declaração, Bolsonaro levou Michelle à missa, na Igreja de Nossa Senhora da Esperança, em Brasília.
Meu colega de Jornal do Brasil, o ex-deputado Fernando Gabeira, com o brilho de sempre, sugere no jornal que se trate na campanha de grandes temas nacionais em lugar do debate religioso, de tempos em que não havia separação entre Estado e religião. Sim, o Estado é laico – a gente repete. Mas há realmente separação entre Estado e religião? Já no preâmbulo da Constituição, os constituintes declaram que a promulgam “sob a proteção de Deus”.
Entre as cláusulas pétreas da Constituição, está a inviolabilidade de crença, assegurado o exercício dos cultos e proteção aos locais religiosos, assim como a assistência religiosa em lugares de internação coletiva, como presídios e quartéis. No art. 143, alegação de crença religiosa pode substituir o serviço militar obrigatório. E o art. 150 proíbe instituir impostos sobre patrimônio, renda e serviços de templos de qualquer culto. Em aparente contraposição, o art. 19 proíbe o serviço público de estabelecer cultos ou igrejas, de subvencioná-los ou embaraçá-los ou manter com eles relações de dependência ou aliança. Por isso, o Estado seria laico?
Olho para fotos da nossa Suprema Corte de Justiça, e vejo um crucifixo, símbolo cristão, dominando o plenário onde se anunciam as decisões. Nos gabinetes de chefes de Poder, governadores, prefeitos, em geral há imagens religiosas. Está até no papel-moeda: “Deus seja louvado”, posto por Sarney em 1986, imitando o In God we trust, do dólar. O Código Penal brasileiro (art.208) pune com até três anos de prisão quem escarnecer de algum fiel, ou perturbar cerimônia religiosa, ou vilipendiar objeto de culto. Estado laico? Tenho visto manifestações políticas atacando imagens que são sagradas para a religião. Para uns, seria combate à idolatria; para outros, cometimento de sacrilégio.
Questões como aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, ideologia de gênero, educação sexual para crianças, liberação de drogas, valores familiares têm sido, na verdade, objeto desta campanha eleitoral, porque são temas que misturam religião e política. O Estado tem a função de garantir, entre as liberdades, a de ter ou não ter religião. Estado laico não deve significar estado antirreligioso, como o comunismo da União Soviética, que tentou banir a religião – e as raízes da Rússia são profundamente religiosas. Hoje, a Nicarágua persegue padres, tal como aconteceu em Cuba. No Chile, queimaram igrejas, recentemente.
O Estado brasileiro não tem religião, como o Vaticano ou o Irã, ou como tem a Argentina, onde o segundo artigo da Constituição afirma que o governo federal apoia o culto católico. Em suma, o Estado brasileiro pode ser necessariamente laico, mas não os eleitores nem os candidatos.
O jornalista Alexandre Garcia escreve semanalmente às quartas-feiras