Jornal Estado de Minas

Comida e voz têm requintes que são apurados com o paladar e o ouvido

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Reclusão doméstica tem uma vantagem – as gavetas, reviradas, mantêm verdadeiros achados de tempos que não voltam mais. Achei esses dias uma coluna datada de janeiro de 1991, na qual comento brincadeira feita com Maria Lúcia Godoy, uma das vozes mais bonitas que o país já teve. E a quem devo um valioso presente: ela veio do Rio para cantar na missa de sétimo dia de minha mãe.



Na época da coluna, Maria Lúcia escrevia também uma crônica semanal aqui no Estado de Minas e fez uma brincadeira com receita publicada por mim, sobre um prato que havia provado em recente passeio pela Europa: uma mousse que tinha como ingrediente básico perninhas de rã. Não entendia a receita, que usava por exemplo chalotas, aquelas cebolinhas pouco comuns por aqui e outros cuidados. Vamos ao texto da época:

“É claro que Maria Lúcia estava fazendo uma brincadeira, porque, viajada como é, sabe que comida é cultura, que cultura é requinte. Logo ela, com a voz que tem. Já imaginaram se por ser mineira estivesse fadada a ser crooner de um conjunto que toca nos botequins da vida? É claro que música popular brasileira, que nossas modinhas, têm seu encanto quando encontram uma boa intérprete. Mas é Mozart quem deleita a alma – ou será Brahms?

É assim também com a cozinha: a gente curte bem um quiabinho, mineiro não passa sem goiabada com queijo, sem torresmo, sem frango ao molho pardo. Mas um patê trufado não faz mal a ninguém, tampouco os requintes de uma sobremesa. Que, aliás, para ser mais concisa, o que importa nem tanto é o que se prepara – mas o requinte que é usado. Igualzinho acontece com a voz: umas são educadas para cantar e encantar, outras apenas cantam para distrair. E a comida e a voz têm requintes que vão sendo apurados com o paladar e o ouvido – os ingredientes dos dois, principais, são o virtuosismo do intérprete.

Sem falar que os termos usados nas receitas foram mais do que explícitos – pelo menos para quem entende do riscado. Porque se algum dia alguém me mostrar um dó maior, posso até procurar entender como é que ele se coloca na pauta. Mas não vou entender bulhufas no conjunto. Com receita não, é mais simples. E perninha de rã nem é tão exótico assim”.

Mais adiante: “Agora uma coisa eu concordo com Maria Lúcia: não gosto nem um pouco de perninha de rã – preparada de qualquer jeito. Como não gosto nem um pouco de muitas e muitas músicas – e de muitas e muitas formas como são interpretadas. Aliás, na comida como na música, o que conta mesmo é o impacto inicial, a emoção do movimento, e as preferências que trazemos dentro de nós. E comida e música a gente tem que ir provando, para formar critérios, definir preferências.



Há muitos e muitos anos, por exemplo, gostava de óperas. Depois, enjoei, hoje gosto de novo. Assim como gosto de velhas modinhas mineiras – e de Villa-Lobos. Com música até que é mais fácil gostar do que com comida – o ouvido é mais 'convencível' que o paladar. Posso me interessar por Chitãozinho e Xororó – mas certamente que jamais gostarei de comer caviar. Mas nem por isso vou deixar de lado o petisco, quando for servido de uma forma especial. Assim é a vida, assim é o mundo. A gente vai tentando tudo para finalmente ficar seletiva: em música e perninha de rã”.