Só pode ser por causa dessa doençada física e psíquica que a COVID-19 vem provocando no mundo que me lembrei de que devia falar de meu pai no último domingo, quando se comemorava o Dia dos Pais. Não merecia a penação que passei. Meu pai era médico e merecia a lembrança por causa da data e da epidemia que paralisa a vida de muita gente. Descobri, de repente, que não sei história nenhuma sobre ele.
Curiosamente, minha mãe sempre escreveu sobre tudo, tem livro publicado, gostava tanto de ler quanto de escrever. Quando fomos juntas à Europa, ela escrevia de noite sobre tudo o que via e fazia de dia. Encontrei o caderno quando ela se foi – um verdadeiro guia sobre Portugal e um pouco da Itália. Para suprir a deficiência de fatos, tenho fotos variadas de meu pai. Uma das mais importantes me foi enviada por uma amiga da família, de Santa Luzia, Preta, onde ele aparece jovem, com aquelas duas orelhas bem separadas e grandes, que herdei, e o cabelo partido no meio.
Mas foi um sobrinho-neto que se espantou com outro retrato que tenho com meu pai e alguns amigos, certamente partindo para uma caçada. Ele era o mais alto da turma e tinha na mão uma espingarda imensa, pouco conhecida. O menino se espantou com o tamanho do bisavô e com o tamanho da arma. A foto dá a pista de que ele gostava de caçada. Outra pista que tenho é um pequeno chicote de couro com punho de prata – porque, isso eu sabia, como ele era médico, saía a cavalo quando tinha um paciente que não podia ser atendido nem na cidade, nem de automóvel.
Fato que me lembrou outro dado importante sobre sua personalidade: devia ser um profissional progressista (formou-se no Rio de Janeiro), porque deu à minha mãe, de presente de aniversário, uma baratinha. Para quem não sabe, era um carro esportivo, bonito, que até baixava a capota. Ela pegou a chave e acreditou que dirigir era tão fácil como tomar conta de filhos (teve nove). Foi subindo a Rua Direita, da porta da casa onde morava com a família, e não muito longe perdeu o controle da baratinha e subiu no passeio. Nunca mais quis guiar na vida, mas gostava bem de circular de automóvel, em lugar de andar.
A porta da casa onde morava, e de onde saiu, era outra imagem da modernidade de meu pai. Numa cidade só de casas coloniais, ele comprou um lote imenso, numa esquina, e construiu uma casa que logo foi batizada de bangalô, termo muito comum para identificar casas de fora do país. Era cercado por jardins – fato inédito na arquitetura colonial, tinha uma larga varanda lateral, com algumas janelas, e era a área de acesso ao interior da construção. Montou lá seu consultório, que era de fácil acesso para os clientes. A casa, até onde posso prever, está lá até hoje.
Outra casa me dá outra pista de sua figura: quando viemos de vez de Santa Luzia, fomos morar na Rua Piauí, numa casa imensa que ele tinha comprado. O bairro era chamado, como continua a ser até hoje, de Bairro dos Funcionários. Isso porque os funcionários públicos podiam comprar casas financiadas. A casa era imensa, janelas para o passeio, jardim lateral, com quintal de mais de
60 metros de fundo, cheio de árvores frutíferas. Peguei ainda os pés de amora que cresciam nos fundos. Certa vez, quase morri envenenada por sementes de mamona, que eram uma delícia, torradas pelo sol e veneno puro. Como fui acudida a tempo por médico da família, sobrevivi.
Não tenho ideia se ele veio clinicar aqui em BH, doente que era do coração, problema que nos dias atuais não mata ninguém, basta um pequeno alargamento de artéria. Mas a verdade é que, aqui ou lá, ficou famoso como o Dr. Chiquito, como é conhecido até hoje. E em sua lembrança tenho algumas peças que me foram doadas por meu primo e amigo-irmão Márcio de Castro Silva: o diploma de formatura, um diploma de benemérito em tratamento para tuberculosos, um retrato formal de formatura.
Marcinho, que já se foi, lembrava-se muito de meu pai e não escondia que foi estudar medicina influenciado por ele. Outra curiosidade que ficou é a pequena família que tinha. De irmãos, minha tia Mita, Eremita, que era “dona” do Correio Luziense e cuja casa está lá até hoje, meu tio Benone, cujo nome era Raul, que nunca trabalhou na vida, e minha tia Eliza Gonçalves, que se mudou com a família para o Rio de Janeiro e de cujos filhos só conheci a mais famosa, Elizinha Moreira Salles (mãe desses filhos famosos que pontificam na cultura nacional).
Nessa busca por casos sobre meu pai, não encontrei mais ninguém. Minhas irmãs que conviveram com ele já se foram e, quando ele se foi, eu tinha apenas 3 anos. Mas gosto de pensar que além de ser meu pai, herdei dele o DNA que cultivo. Gosto de medicina, tenho olho vivo para fazer diagnósticos rápidos. Curiosamente, em toda a minha família de tantos irmãos e sobrinhos, tenho apenas um sobrinho médico.