Jornal Estado de Minas

A lembrança de um amigo me acompanha nesses dias difíceis

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Tenho uma irmã mais nova – que sobrou das sete que minha mãe teve – que me aconselha, quando vou deitar e ainda não dormi, a fazer um retrospecto do passado. Ela é uma craque nisso, lembra-se de tudo da casa em que moramos na Rua Piauí, quando ela tinha pouco mais de 3 anos. E do Santo Antônio então, onde moramos depois, ela se lembra de tudo, das casas, dos moradores, do comércio da época. 





Minha cabeça anda fundida com a idade e, de vez em quando, busco uma memória especial, de pessoas que realmente marcaram minha vida. E nesses tempos de dor e recordações, o que me vem à lembrança é a figura de um grande amigo que já se foi: dom Timóteo Amoroso Anastácio, um beneditino que era seguido e admirado por sua consistência religiosa, e não por sua cantoria, como se usa atualmente. 

Conheci dom Timóteo na Livraria Itatiaia da Rua da Bahia, nos tempos dos irmãos Moreira, através de minha amiga e comadre Neta Moreira, que já se foi. Nós ficávamos conversando horas com ele, usando uns truques bem simplórios para que ele nos mostrasse a sola de seu sapato – que vivia furada. O calçado substituto era fornecido por Edison Moreira, já bastante usado, mas Dom Timóteo preferia guardar o seu por mais algum tempo, colocava no fundo um pouco de papelão.

Quando vinha à capital (era abade do Mosteiro de São Bento), ele se hospedava no convento das beneditinas, onde íamos levá-lo no fim da tarde. E quando a ditadura explodiu, Dom Timóteo se movimentava como podia, ajudando vários amigos a se livrarem da prisão. 





Numa manhã em que não me lembro mais por que, estava na Redação do Diário de Minas, fazendo não sei mais o quê, ele apareceu aflito, tinha uma fugitiva política dentro do carro. Queria informações sobre barreiras policiais e sobre determinada pessoa que devia abrigar sua amiga. Resolveu tudo rapidamente, porque a moça estava escondida dentro do carro emprestado que tinha arrumado, para levá-la para um esconderijo seguro.

Só nos encontramos alguns anos depois, "deportado" que ele foi para um convento na Bahia, sem a menor expressão. Estive com ele uma manhã, conversamos debaixo da sombra das árvores do convento onde estava recolhido, sem muito contato com os fiéis, mas a mensagem era a mesma, de fé, de confiança total na igreja. 

A Bahia foi a pena que a ditadura aplicou contra sua luta – que, mais do que política, que aliás de política não tinha nada, ele não era um pregador da esquerda, era uma luta cristã. Ele queria salvar quem pudesse da prisão, dos sofrimentos sem caridade, das torturas, sem falar nas mortes, que silenciaram muita gente boa neste país. Mais pudesse, mais teria feito, porque Dom Timóteo estava acima de tudo isso que vemos acontecer por aí, nesses últimos tempos em que a revolução gloriosa só nos deu dor, perda e, pelo menos nos últimos anos, nenhum futuro.





Sua atuação durante a revolta estudantil no Rio, quando conseguiu abrigar vários estudantes, até mulheres, para espanto dos outros monges, que não admitiam mulheres no convento, ficou histórica. Sua passagem pela Bahia não ficou em brancas nuvens. Entrevistado pela TV Educativa do estado, em 1989, Timóteo confessava que a Bahia o fez descobrir a dimensão da alegria, do corpo, da dança, do prazer sensível. 

"O encontro, por exemplo, com o pessoal dos santos... Uma beleza! Um pessoal, inclusive, de grandes virtudes cristãs, de acolhimento, de humildade, de paciência, de gentileza, de hospitalidade e também de respeito. Nunca tentaram fazer com que eu deixasse a religião católica para me tornar um fiel do candomblé. É aqui que eu quero ficar, viver e morrer, na graça de Deus e nos braços da minha mãe Igreja. Aqui, na Bahia." 

Esse seu último desejo foi cumprido, em 3 de agosto de 1994. Nesse dia, uma multidão de baianos se despediu dele com muitas orações na sua viagem para junto do Deus, que tanto testemunhou.

Lembrei-me muito dele agora, nesses tempos de recordações – tenho um livro que me deu, com uma linda dedicatória –, quando a cada dia percebo que o que forma legiões de seguidores da fé cristã é muito mais a voz do padre do que propriamente a mensagem que passa. E admiro tanto a memória de Dom Timóteo, como admiro a figura participante de nosso papa, cuja vida acompanho mesmo antes de ser escolhido, quando morava na Alemanha e gostava de cozinhar pratos italianos para os colegas de mosteiro. Alguém sabe ou se lembra disso?