Jornal Estado de Minas

Sexta-feira Santa, um dia de fervor, devoção e tradição familiar

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Minha família sempre respeitou as tradições católicas, mantendo cuidados que vão aos poucos desaparecendo. Como a cidade de Santa Luzia concentrava todas as tradições, a semana santa era uma época privilegiada para que todos se juntassem, decisão mais do que ótima, que atualmente não existe mais. A cada dia que passa, notamos o afastamento familiar, quando era comum todos se reunirem.




 
A época era de congraçamento geral, as portas não fechavam e as mesas das salas de refeições estavam sempre aguardando quem quisesse se alimentar. Sem nenhuma formalidade, convites não eram necessários e o prato principal era o bacalhau.
 
A moçada se reunia em papos que viravam a noite, regados a cachaça e cerveja. Fazer o trajeto das mesas era atração dos gulosos, que começavam na casa da minha avó, ao lado da matriz, e desciam rua abaixo. Muitos estômagos aguentavam a comilança, ninguém vigiava, ninguém controlava.
 
Na escadinha da entrada do Solar Teixeira da Costa ficava minha prima Juli, tomando conta de tudo o que acontecia na rua, acompanhada por cheiradas maciças de fumo. Ela tinha pendurado na frente da roupa um pequeno recipiente sempre cheio de rapé, com o qual se regalava sem o menor problema.




 
Para quem não conhece, trata-se do pó de fumo ralado. Quando inalado, o rapé muitas vezes causa espirro, e este é geralmente visto por apreciadores experientes como sinal de iniciante. A tendência para espirrar varia de acordo com a pessoa e o rapé em particular. Geralmente, os rapés mais secos são mais propensos a fazer isso.
 
O interessante é que ninguém se incomodava, cheirar rapé não tinha nada a ver com droga. Mas devia ser estimulante, porque Juli não perdia nada do que acontecia no adro da igreja matriz, em frente de sua casa.
 
Uma tradição da família, já contei aqui, era cuidar da organização das solenidades da igreja. Quando era pequena, tinha a maior inveja de minha prima Maria da Conceição, porque seus cabelos louros, presos com papelote, se transformavam em belos cacheados, que cobriam sua cabeça. Os meus nunca me deram esse orgulho, além do mais eram escuros. Nas procissões, lá íamos nos duas, vestidas de anjo com túnica de cetim branco e asas feitas com penas de pato.




 
Outra prima querida, que já se foi, Naná Gabrich dividia comigo uma tradição familiar: compor o caixão onde o Cristo morto era colocado para descer a rua após o descendimento da cruz. Nós íamos cedo para a sacristia e cuidávamos do caixão com todo empenho.
 
A “cama” era montada com lençóis de linho bordado, um pequeno travesseiro ajudava a firmar a cabeça do Cristo morto quando ele era retirado da cruz para seguir pela Rua Direita, voltando para a matriz, onde era colocado em uma tenda dourada e florida, em frente ao altar-mor. Eu e Naná éramos encarregadas do trabalho – com toda a tradição –, não se admitia gente fora da família.
 
Durante anos cuidei dessa tradição familiar, até que a COVID-19 acabou com esses caprichos, que existem desde o século passado, desde o tempo da nobreza. Esse trabalho, aparentemente sem muita ostentação, sempre seguiu nas mãos da minha família – agora, como os tempos são outros, não sei como andarão.
 
Mas essa simplicidade sempre foi cercada de orgulho e agradecimento. As flores que iam no caixão sempre foram escolha de outra prima, Beatriz Teixeira, em cuja casa a tradição é mantida: o panelão de bacalhau, preparado no capricho e com a maior fartura, está sempre esperando os famintos na varanda.