Como amanhã é Dia das Mães, procurei um texto escrito por Cyro Siqueira na abertura do livro de memórias “Rua Direita”, que minha mãe deixou para nós. Existe uma razão importante para essa escolha, porque, por motivos óbvios para as leis da sociedade mineira, o primeiro encontro dos dois começou com guerra. Os tempos foram passando, as exigências legais sendo obedecidas e os dois passaram a se entender amorosamente. Ele gostando muito dela, admirando sua vivacidade e inteligência, ela louvando o amor que existia entre o genro e a filha.
Viveram lindamente, gostavam de conversar, de conviver, de viajar juntos. Ele a levou, com 70 anos, para ver de perto as maravilhas que ela queria conhecer na Europa. Ele, natural de família mais do que pequena, vivia completamente o interesse dela por uma família muito grande. Aos leitores, passo o amor que nos ligou:
“A ideia que faço de Santa Luzia é de uma ilha separada do continente pelo Rio das Velhas. No outro lado, o mar, pois só pelo mar poderiam ter descido os baianos, os barões e viscondes assinalados, o monopólio do sal, toda a vasta e misteriosa carga que, desembarcada de navios legendários, construiu uma civilização pioneira. Além do mar, dona Lygia, que para mim é o oceano. Sábio e tranquilo oceano cujas águas banham as praias do mundo. Talvez eu me explique melhor se disser que, aos 80 anos, ela guarda intacta a curiosidade com que deve ter iniciado sua caminhada e a mesma força de decisão com que conduziu seu destino, quando, moça ainda, viúva e cheia de filhos, atirou-se à luta, educando-os como primorosamente o fez, casando-se de novo e continuando a ter filhos, a quem deu o mesmo destino.
Armada de uma curiosidade universal, dona Lygia por tudo se interessa – e graças a isso termina interessando a todos. Com uma capacidade de comunicação que é das marcas curiosamente típicas desses admiráveis Teixeiras de Santa Luzia – de onde terão eles trazido essa qualidade, no coração de uma terra mineira de gente ensimesmada e de tão longos silêncios –, ela se faz entender “urbi et orbi”. Como no ônibus onde íamos, ela, sua filha e eu, entre Roma e Nápoles, a caminho de Capri. A seu lado sentou-se um cidadão e seu bigode colonial. Ao passarmos por Monte Cassino – ou Castelo? –, ela, informada do fato, iniciou, em português, uma longa conversa com seu vizinho – que não entendia português.
Não houve problema: ela conversou em português, ele conversou em inglês. Ambos terminaram se entendendo. No fim da viagem, ela comentou comigo: “Esse homem aí gostou muito das coisas que contei para ele sobre aquele lugar onde os soldados brasileiros derrotaram os alemães.”
E gostou de fato, pois não existem barreiras de línguas que detenham as águas do oceano. Assim foi também quando a levei para visitar as ruínas do Fórum Imperial, em Roma, imponência que resistiu a séculos de guerras e devastação. No meio das colunas e colunatas e dos jardins dos césares e suas mil mulheres, dona Lygia, um assobio nos lábios, colhia pequenas flores silvestres que teimavam em brotar ali, sobre os passos que ainda ecoavam as legiões romanas.
Foi uma viagem inesquecível que teve momentos da mais genuína emoção, como quando ela se viu diante das ruínas de Pompeia que representam, na realidade, aquilo que ela sentiu, a epítome arquitetônica de todo um período da humanidade. Ou quando ela penetrou na casa que fora de Axel Munthe, no coração de Anacapri, um momento que distingue a grandeza do homem.
Mas foi em Portugal que dona Lygia mais se realizou ao encontrar suas raízes em Viana do Castelo e nos pequenos vilarejos que fazem o encanto daquela terra abençoada.
Dona Lygia é memorialista. Mergulha no passado fascinante de Santa Luzia. Em um estilo que não se pretende rebuscado, antes pelo contrário, feito com a pureza cristalina da simplicidade, vai contando fatos e episódios que fazem parte do húmus que brotou daquela surpreendente civilização luziense.
E aos poucos, como por um milagre, o mistério da cidade vai tendo seus contornos definidos – passo a passo, melhor, página a página, vamos penetrando nos debates com que o concílio dos deuses definiu a estrutura de uma comunidade ímpar – tudo um trato com a composição do homem dentro das dimensões de sua própria humanidade, naquele que ele tem de mais autêntico e também de mais ingênuo.
Pois calor humano é o que não tem faltado a dona Lygia.”