A bem da verdade, é como se eu não tivesse pai. Quando o meu morreu, eu tinha pouco mais de 2 anos, caçula de um casal que colocou no mundo 10 filhos – dos quais sou a última que está por aqui. Como minha mãe se casou de novo uns cinco anos depois, os tempos em que ela se lamentava da perda do primeiro marido eu era muito nova para guardar. Então, o que sinto são imagens baseadas em fotos, diplomas, um ou outro lance pequeno.
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Nos meus tempos de goleira, a bola rolava em plena Avenida do ContornoQueda e coice existem mesmo: depois que caí, não posso mais dirigirMeu livro de cabeceira foi escrito pela menina Alice, no século 19Saudades de um tempo feliz, na telinha da TV ItacolomiOs cinco mandamentos do relacionamento saudávelAlta-costura abre espaço para a ousada moda masculina contemporâneaConfira dicas para manter o colesterol sob controleConcerto "Tributo a Aleijadinho"Meu pai logo ficou famoso em Santa Luzia e cumpria sua profissão ao pé da letra: atendia paciente a pé, na cidade, ou em lombo de cavalo, para cobrir as distâncias. Quando era menina e morava na cidade, eu conhecia várias mulheres que se tornaram mães tendo meu pai como parteiro, os elogios eram muitos.
Ele devia ser mesmo um médico além de seu tempo, só por escolher o Rio de Janeiro para estudar já dá uma visão disso. Além do mais, não se fazia de rogado, de doente. Tinha um problema coronariano – arteriosclerose, que atualmente se resolve apenas alargando um vaso, mas naquele tempo não existia nem tratamento nem cura.
Assim como gostava de tratar, gostava também de caçar. Um dos retratos que tenho dele é junto de amigos caçadores. Alto, magro, com uma carabina na mão. Fora esse retrato, os únicos que tenho, e espalhei pela minha casa, são de formatura e outro, formal, que hoje seria usado em alguma carteira.
É claro que deixou um mundo de comadres, mulheres e famílias que tratava sem cobrar – naquele tempo, não existia programa social nesse sentido. De consulta em consulta, conseguiu juntar algum fundo para manter a família. Quando morreu, deixou imensa casa no Bairro Funcionários, o que faz entender que trabalhou algum tempo para o governo, o que identifica as casas que deram nome à região. Esses imóveis eram vendidos com pagamento a longo prazo, por preços praticamente formais.
Só para dar o tamanho do imóvel, o terreno tinha 40m de frente por 60m de fundos, repleto de árvores, de bananeiras a pitangueiras – mas não tinha jabuticabas.
Além disso, deixou um sobrado em Santa Luzia, cujo aluguel ajudava minha mãe. Quando se casou, mostrou seu modernismo. Morador desta cidade tradicionalmente colonial, construiu para a família morar uma casa de raízes europeias, conhecida até há bem pouco tempo como bangalô. Ou bangalow, para ser mais da época. Tinha jardins em torno da construção, que não era no nível da rua, varanda em torno para curtir tardes e descansos, janelas que viviam abertas e, claro, quintal cheio de árvores frutíferas e horta para a cozinha doméstica.
Outra coisa que fez, absolutamente insólita para a época, foi dar uma baratinha de presente para minha mãe. Para quem nunca ouviu falar, era um carro menor, bem bonitinho, pronto para rodar em qualquer estrada – o que poderia ajudá-lo a atender pacientes fora da cidade.
Minha mãe adorou – era a única mulher da cidade com um carro para dirigir. Alguém lhe deu algumas explicações e ela não teve medo: subiu, ligou e pensou que era craque, porque o carro andou. E arrebentou-se todo na mesma rua, pois ela subiu num monte de pedras do qual não conseguiu se desviar. Aprendeu de uma vez: nunca mais tentou dirigir.
Como marcou época na cidade, inclusive dirigindo o Hospital São João de Deus, meu pai ganhou nome em uma rua, mais distante do Centro, e a referência, que ainda sobrevive, como grande médico. Eu, como filha, acho que herdei dele o DNA de medicina, assunto que me atrai. Por isso, falo hoje do doutor Chiquito, diminutivo do seu nome, Francisco Vianna Santos. A quem nunca conheci, mas de quem tenho muita saudade.