Com Jair Bolsonaro insistindo que o coronavírus é como “chuva, vai molhar 70% de vocês, certo?, e toda nação vai ficar livre de pandemia quando 70% for infectada e conseguir os anticorpos”, não se leva mais em conta o que ele diz, entre líderes empresariais e políticos, mas o que fazem os ministros de seu governo e os riscos econômicos e sociais à frente. Os ‘adultos’ da sala se atém a isso.
Não é papel de presidente e de ninguém com responsabilidade sobre a saúde do povo, a ordem social e o regramento legal passar o tempo acusando quem ouse fazer o que lhe é dever que faça, como as decisões de fechar colégios, comércios, escritórios e restaurantes baixadas por governadores e prefeitos. Inaceitável, igualmente, é o presidente manifestar seu ciúme em entrevistas e nas redes sociais com a eficiência do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Dever do chefe é elogiar o subordinado competente.
Ele se diz preocupado com a situação dos milhões de trabalhadores informais sem trabalho e, portanto, sem renda, como se os projetos propostos pelo Congresso e formulados com relutância pela equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, não se destinem a criar uma rede de proteção à multidão de invisíveis da sociedade. Tal como outros projetos visam ajudar as empresas a manter seus empregados com carteira assinada, com o governo subsidiando parte da folha.
O programa de emergência econômica e social envolveu todos os poderes institucionais, sob a liderança do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e se tornou virtualmente consensual também no Senado, no STF, no STJ e no TCU, criando condições para o governo poder ir além do que permitem a Lei de Responsabilidade Fiscal e o teto de gastos públicos sem o risco de cometer alguma ilegalidade.
Ao assumir-se como subversivo da pandemia confundindo a sociedade, chamando governadores de “terroristas”, Bolsonaro se tornou, ele próprio, a ameaça a conter, tal como o isolamento social visa achatar o ritmo da infestação para não colapsar a rede hospitalar.
O liberalismo corrompido
A verdade: a recomendação do isolamento social assumido com vários graus de restrições por governadores e prefeitos é política oficial do governo, conforme instrução do ministro da Saúde. Ele segue as diretrizes da Organização Mundial da Saúde, a prática dos governos mundo afora e tem o apoio do Congresso, dos chefes militares e de medalhões do Ministério, como Sérgio Moro e Paulo Guedes.
Outra verdade: a COVID-19 expôs a dificuldade do governo em achar os mais necessitados ou por não tê-los cadastrados ou por que seus bancos de dados não conversam entre si (embora interoperabilidade entre eles seja antiga, os ministros e secretários é que não sabem ou fingem não saber). Os informais do país poderão receber R$ 600 ao mês por 60 dias, ou R$ 1,2 mil por família, mas o governo tenta descobrir como fazer o dinheiro chegar a cada um deles.
Trata-se do desprezo que a parcela majoritária da população sempre encontrou dos governantes, de todos, cabendo para infelicidade de Bolsonaro que isso ficasse explicitado em seu governo, agravado pela corrupção da ideologia liberal em seu entorno.
Lobistas do risco fiscal
Jamais um liberal autêntico diria que assistência social é coisa de socialista, como tuitou seu filho Carlos Bolsonaro. Ou anuiria com o presidente do Banco do Brasil, Rubens Novaes, para quem “depois que se monta um grande Estado assistencialista fica difícil desmontá-lo. Crises instigam os piores instintos intervencionistas e estatizantes. Não podemos deixar que esta crise médica, por mais séria que seja, destrua as bases de nossa sociedade”.
Novaes é muito próximo de Guedes, cuja visão antiga sobre o trade-off entre Estado e mercado é mais problema que solução para um país atrasado, dependente de atividades com baixo valor agregado, com um contingente enorme de pobres abandonados, inclusive pela sociedade que se diz do “bem”. Não há o risco de solvência fiscal no Brasil.
Vê-se pela inflação domada. Há, sim, um Estado fisgado por grupos retrógrados e por um punhado de corporações como as que Bolsonaro sempre representou no Congresso. Austeridade é contra o mau uso do dinheiro público. Falar de teto de gasto a esta altura pelos fieis iludidos pela corriola de rentistas, comum na imprensa, desserve ao progresso já ameaçado antes da COVID-19.
Atenção ao pós-coronavírus
O que nos aguarda? Passamos, do ponto de vista do Legislador e do Direito, por dois momentos. Primeiro: o do susto. É o que vivemos agora, caracterizado pelas leis excepcionais para adaptar os marcos legais à situação de parada abrupta de quase toda a economia.
O segundo virá da percepção de que a retomada provavelmente será disruptiva e não trivial – ou seja, não repetirá o para-anda dos ciclos das últimas décadas de recessão e recuperação. Nos EUA e na Europa, delineia-se um quadro mais de depressão que de uma recessão convencional, tendendo a ser mais profunda que a de 2008-2009 e com possibilidade de forçar mudanças extraordinárias.
Aqui talvez o auge das sequelas do coronavírus se dê por volta de agosto e setembro. Este risco vai implicar um arcabouço legal que fundamente proposições de política econômica nem sequer cogitadas no Brasil, mas já em franca discussão nos EUA, Inglaterra e Japão.