O Brasil vai mudar. Já está mudando, embora a mudança ainda seja pouco perceptível. Ela se deve à pandemia do vírus nascido na China e alastrado pelos países com economia forte e setor público fraco, depois de anos de austeridade fiscal sobre os programas sociais em detrimento da atenção à saúde e ao desemprego de longa permanência. Estão se saindo melhor os países asiáticos e uns poucos europeus, todos com governança pública sólida, forte coesão social e economia sustentada em dois princípios: amplo suporte à inovação empresarial privada e estratégias nacionais na fronteira da macroeconomia.
É o que se assiste nos EUA e na Inglaterra, onde a crise provocou uma rara coalizão entre governo e oposição para adotar políticas em desuso pelo consenso neoliberal do Estado mínimo, e levou a China a anunciar a primeira moeda digital soberana, o e-renminbi. Trata-se de movimento disruptivo de largo alcance. Dois anos atrás, André Lara Resende propôs o mesmo ao Brasil e este escriba escreveu sob a forma de projeto de governo. Conforme nosso secular atraso intelectual, seremos os últimos a pensar em algo assim.
No Brasil, nada disso está em questão. É com relutância, num misto de aversão e medo, que o governo vem liberando recursos para ajudar a sobrevivência da multidão de informais subitamente sem renda e as empresas a manter os seus empregados por mais três a quatro meses.
Faz mais por pressão do Congresso e governadores que por saber que esta seja sua obrigação. O ministro Paulo Guedes discorda, já que, para ele, “quando falamos que vamos ter de nos reerguer pelo capital privado, pelos investimentos privados, é porque o governo quebrou”. Por tal concepção, dinheiro tem ideologia, depende de onde vem. É a antítese de um princípio valioso do capitalismo: o pragmatismo.'A cúpula da equipe econômica se guia pelo que afirmou o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes: 'O Estado não é solução, o Estado é problema''
A cúpula da equipe econômica se guia pelo que afirmou o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes: “O Estado não é solução, o Estado é problema”. Repetiu o discurso de posse de Ronald Reagan, em 1981, com três consequências notáveis: uma corrida armamentista que pôs fim à União Soviética; uma aliança tática que fez a China ascender como potência industrial hegemônica e rival militar formidável dos EUA; e o empobrecimento da classe média americana, cujos empregos foram terceirizados para a China e o mundo emergente.
Aliança prafrentex nos EUA
Curiosamente, as políticas de estado mínimo e de mercado alheio às prioridades nacionais, que em quaisquer circunstâncias têm de ser o bem-estar da maioria da população, são mais criticadas nos EUA pela direita empresarial do Partido Republicano de Donald Trump tal como critica há muito a esquerda Democrata. Essa é a coalizão casual.
Os senadores Marco Rubio, da Flórida, e Josh Hawley, do Missouri, são os republicanos que defendem política industrial nos EUA, até algo como o BNDES e estatais, para enfrentar a China, em especial ao ficar evidente a dependência absoluta dos hospitais de insumos e reagentes produzidos por firmas chinesas. O senador Hawley admite contrariar a ortodoxia tanto para reaver os empregos perdidos como para manter o poderio dos EUA. E o faz em nome de outra ortodoxia: “família, comunidade e indústria para a liberdade e prosperidade do país”, legenda do American Compass, think-tank dessa corrente. Bolsonaro é próximo desse grupo por meio de seu filho Eduardo, e, no entanto, nem ele nem Guedes parecem conhecer tais ideias.
Fins estranhos e perigosos
Mais estranho que as intenções de Bolsonaro e tão perigoso quanto suas incursões cotidianas contra as medidas para conter o avanço da epidemia num país cuja estrutura hospitalar tem padrão europeu para a minoria que pode pagar plano de saúde e é o inferno na terra para a maioria ignorada pela parte afortunada, o vírus acelera seu ritmo de mortes. Como o desemprego, que avança pela carência de políticas públicas adequadas e não apenas pela parada súbita da economia.
Se o aumento da contaminação no país levou até Trump a manifestar sua preocupação por três dias seguidos, sempre lembrando ser amigo de Bolsonaro, os sinais não são bons. O provável, segundo pesquisas recentes, é que o Brasil em mais um mês será o segundo no mundo, depois dos EUA, com mais mortes pelo coronavírus. Bolsonaro culpa os governadores por adotar o isolamento, não se vendo como responsável por tal enquanto detentor da chave do cofre, que seu ídolo Trump escancarou e o resto do mundo acompanhou.
Brasil da maioria se expõe
“Ah, mas há o risco da dívida pública”, alarma-se o colunista mais fiscalista que rentista. “Não faltam propostas oportunistas”, diz outro. É como “bater a carteira”, disse Guedes, ao criticar o plano de retomada das obras de infraestrutura que o general da Casa Civil anunciou e não soube ou não quis explicar.
Tudo distração, por mais convencidos estejam quem diz tais coisas. O Brasil não está quebrado, tem é uma política de austeridade que corta programas sociais, enquanto mascara os gastos com a elite da burocracia, tratados como direito adquirido, e dissipa receitas com setores atrasados. Não é teto de gasto que resolve iniquidades, mas uma reforma do Estado para valer, o que este governo nunca quis.
O governo fala em reforma federativa, em menos Brasília, mas fez o diabo junto ao Senado para melar projeto votado na Câmara de ajuda a estados e municípios que visava o certo: repor a receita de ICMS e ISS perdida em relação aos valores arrecadados em 2019.
Este é o programa compensatório obrigatório à União, o do Senado é o “mal bolado” para encabrestar os estados que mais contribuem para a receita federal e menos recebem de volta (dependem só de receita própria). Deve ser coincidência que os governadores de estados como São Paulo e Rio sejam os que menos se vergam a Bolsonaro, né?
Este Brasil de costas para a maioria pobre foi exposto pelo vírus. É nele que moram Bolsonaro e os alienados. Ou o Brasil da maioria se faz ouvir ou esqueçamos o significado da palavra progresso.