Já passa da hora uma reação contundente às calamidades econômicas e sociais do país explicitadas pela pandemia. Elas vão muito além do colapso da saúde, inclusive privada. Está evidente a dificuldade dos governos regionais em gerir uma crise universal, agravada pela alienação da realidade do governante federal, que o faz não se ver responsável pela coordenação de ações que são suas numa federação.
Se o governo federal é capaz de cobrar tributos em nível nacional, também teria de sê-lo para fazer chegar ao bolso dos necessitados o auxílio emergencial de R$ 600 e as linhas de crédito abertas com fundos do Tesouro Nacional e do Banco Central para que as empresas não demitam em massa nem cerrem as portas por falta de receita.
Se a altíssima letalidade da COVID-19 era óbvia antes do carnaval, tanto que o presidente Jair Bolsonaro emitiu e o Congresso validou o decreto de calamidade pública, nada justifica a demora em comprar os insumos necessários para equipar os hospitais e mobilizar tantos profissionais da saúde quanto se fizessem necessários.
Nem se pode alegar que faltava dinheiro, já que, por iniciativa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, político dos mais atacados pela militância bolsonarista, o Congresso aprovou o tal do "orçamento de guerra", que libera ao governo federal gastar o que se faça preciso sem risco de ser responsabilizado por cometer algum crime fiscal.
Não há o que explique a relutância do governo federal em coordenar ações de isolamento social e mesmo de lockdown, deixando a estados e municípios o que se fez sem planejamento e, ainda assim, graças à intervenção do STF, ao referendar a autonomia dos entes federativos para ações de saúde pública que o presidente não queria assumir.
O tempo passou, ele chegou a declarar que o vírus se limitaria a 800 mortes, seria "gripezinha", e, depois das ações atabalhoadas de governadores e prefeitos, damos conta de que talvez o lockdown seja a solução. Isso com dois a três meses de comércios e serviços com porta fechada, sem caixa para fazer frente aos pagamentos devidos.
Vidas foram interrompidas pelos disparates dos eleitos, tais como um leigo vir a público aviar receita contra o vírus, algo capcioso, com o fim de serenar os instados a trabalhar com a crença de que há cura a sua espera caso o pior lhe aconteça. Nada disso é normal!
Novidade aos avestruzes
As mazelas da gestão do Estado brasileiro são velhas e conhecidas. Sabe-se que o país estagnou nos últimos 30 anos pela inaptidão de governantes, de políticos e da Constituição feita para proteger uma burocracia alheia a quem lhe provê o sustento e, sobretudo, sem dar prioridade ao investimento produtivo. Tudo isso se sabia.
A novidade aos avestruzes do naco afortunado entre os brasileiros é que a pandemia destampou a miséria majoritária, o povo "informal" que o governo só descobriu ao se espantar com o número de pessoas habilitadas a requerer o auxílio emergencial. Alguns milhões, ainda não contados, nem sequer têm certidão de nascimento.
O SUS, que já se sabia exaurido e mendicante de verbas no orçamento federal limitado pelo teto de gasto público, serve à maioria, não ao punhado de pessoas, algumas centenas, não mais que isso, que saem em carreatas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo. Esse é o Brasil que em 30 anos fez a economia então líder entre os países à época chamados de subdesenvolvidos ser ultrapassada pela Coreia do Sul, China, Índia, tanto em produção quanto em empregos e renda.
Que risco merece atenção
O que será daqui em diante depende da "marcha dos acontecimentos". Sejam lá quais forem eles, pode-se dar como certo que uma política econômica dissociada da prioridade das necessidades dos pobres, que fazem 83% da população (pela medida de renda familiar total de até cinco salários mínimos), vai frustrar-se a priori. Como fracassou, lato sensu, o que se faz desde a estabilização monetária de 1994.
O maior risco pela frente está nas demandas sociais insatisfeitas – emprego (mais que ajuda de subsistência), educação com formação tanto ao mercado de trabalho como para o empreendedorismo, moradia com saneamento, segurança de ir e vir. Não é muito. É, ao contrário do que sugerem os economistas ortodoxos, que mais temem as reações dos financistas que a voz rouca das multidões, o que nos falta para termos uma economia com mercado de massa atraente ao capital.
A prosperidade ou vem para todos ou será sempre insegura para quem pretenda investir em longo prazo. É esta segurança que deve chamar a atenção do mercado financeiro e da corporação militar empregada no governo em funções civis, não como tutora do governante.
As cartas estão abertas
Depois de divulgado o vídeo da reunião ministerial que levou à demissão do então ministro Sérgio Moro, as cartas estão abertas. O que será adiante depende de como cada um se posicionará com relação a Bolsonaro. Quem o odeia, odiará ainda mais. Quem o apoia, achará motivos para reforçar o apoio. Quem estava em dúvida, ou as tirou ou vai se recolher à sombra. Certo é que como está não deve ficar.
A economia sem forte impulso fiscal e monetário seguirá prostrada. Sem a manutenção do auxílio aos informais sem trabalho e, por muito tempo mais, provavelmente sem renda, a agitação social tenderá a despontar e a ofuscar o povo de camiseta da seleção. As comunidades de São Paulo e do Rio já fervilham, por ora sem líderes explícitos.
Como dente do siso inflamado
Ao governo é como se a estrada larga legada pela gestão passada se afunilasse em pista de mão única em trecho sinuoso de terra. Ou vai para frente com crescimento econômico, injetando esperança, ou não terá a estabilidade que anseia nem apoio dos mercadores do centrão, a maioria pastosa do Congresso que se distingue pelo faro político.
Em linguagem mais tosca, ao estilo Bolsonaro, estamos com um dente do siso inflamado. Todos sabem o que isto significa. Ele também.