O governo de Jair Bolsonaro se distingue por ora menos pelas suas realizações que pelas polêmicas que cria, mas são elas que tendem a ser a síntese de sua obra – muito calor com pouco resultado, mais o benefício de aclarar o que era dúbio para uma minoria na sociedade.
Ao forçar a discussão sobre o que dispõe a Constituição, tal como a independência com harmonia do Executivo, do Congresso e do STF, ele se enfraqueceu. E isolou, até entre seus apoiadores, os grupos que pregam intervenção militar, além dos generais que levou para o governo representando ambições pessoais, não as Forças Armadas.
Foi salutar, pois se dúvida havia sobre o legalismo e subordinação das Forças Armadas à Constituição depois da ditadura militar, ela se dissipou. O governo não é fardado. O resto é ilusão de radicais.
O STF teve que intervir e esclarecer que competem aos governos regionais ações de lockdown econômico e de isolamento social, cabendo ao governo federal propor ao Congresso medidas gerais e ajudar o sistema público de saúde.
O presidente nunca absorveu tais autonomias constitucionais, mas a razão é mais oportunista que ideológica. Ao transferir a prefeitos e governadores os ônus da pandemia, é como procurasse se isentar de responsabilidades pela recessão e desemprego devidos às medidas de distanciamento social. E isso também por aceitar, ou julgar-se sem condições de contrariar, o fiscalismo de antanho de seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Vem daí o trade-off entre vida ou emprego.
Se historicamente mais da metade da força de trabalho ocupada está empregada em atividades informais ou sobrevive como empreendedor individual, programas tipo seguro desemprego não funcionam, já que são exclusivos ao trabalhador com carteira assinada. Idem aos programas para micros e pequenas empresas, com o agravante de que até as que têm CNPJ são atendidas insatisfatoriamente em tempos normais.
As sequelas da pandemia estão à vista: governantes despreparados à situação de mais de 60% da população na pobreza ou no limiar da miséria, com maioria de empresas frágeis que empregam muita gente e um governo que reconheceu desconhecer tais realidades seculares.
Mais de 65 milhões de brasileiros se habilitaram ao auxílio de R$ 600, surpreendendo o ministro Paulo Guedes, que definiu bem este cenário – o “Brasil invisível”, expressão que usamos neste espaço há vários anos.
Até então, supunha-se que a maioria dos empregados tivesse registro formal, que mal abrange um terço da população com algum tipo de ocupação remunerada. O isolamento para conter o ritmo do coronavírus, que se expande por contaminação, teria de dispor de uma rede de proteção muito maior do que o governo jamais admitiu.
Até então, supunha-se que a maioria dos empregados tivesse registro formal, que mal abrange um terço da população com algum tipo de ocupação remunerada. O isolamento para conter o ritmo do coronavírus, que se expande por contaminação, teria de dispor de uma rede de proteção muito maior do que o governo jamais admitiu.
E ainda assim o fez por iniciativa do Congresso, não por sua livre vontade. O auxílio emergencial foi lançado pela Câmara; Guedes, que não cogitara algo assim, falou em R$ 200 mensais. Só se chegou a R$ 600 depois de Bolsonaro intuir que seria aprovado o vale de R$ 500.
Sem educação, nem crescimento
A pandemia obrigou o governo e a minoria do topo da pirâmide de renda a olharem para baixo, descobrindo um país injusto, ignorado por razões sociais e culturais. Mas o fizeram com relutância, como se constata pela resistência ao isolamento e ao uso de máscara.
O Congresso a tornou obrigatório e Bolsonaro, como cópia de Donald Trump, vetou o artigo que obriga o seu uso no comércio, indústrias, templos religiosos e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas sob o falso argumento de que “incorre em possível violação de domicílio”. Ele mesmo raramente a usa e estimula concentrações.
Por tais atitudes, o presidente se tornou dispensável à discussão das políticas de saúde. O problema é que por razões mais ligadas à sua inexperiência que à ideologia ultraconservadora do grupo ao qual ele costuma dar ouvido outras áreas essenciais estão à deriva.
O Ministério da Educação, por exemplo, a rigor está vago desde 1º de janeiro de 2019. O crescimento econômico é tratado como questão dependente de equilíbrio fiscal e de confiança do capital privado. Resultado: nem o país educa seus jovens, nem há crescimento à larga.
De quem será o século 21
Até onde vão as sequelas da pandemia ninguém. O que se sabe é que o risco de depressão pela parada da economia passou e a recessão talvez seja menor que a prevista pelo FMI (queda de 9,1% do PIB este ano). O Banco Central projeta -6,4%. E depois?
Depois será a volta da estagnação, se o governo se mantiver alheio ao processo do crescimento, convencido de que o Estado é problema e não parte da solução; que o país tem viés de insolvência; que tanto a dívida pública quanto a taxa básica de juro dependem uma da outra e ambas da confiança do mercado financeiro. A ser assim, o Fed e os bancos centrais da Inglaterra, da Zona do Euro, do Japão etc. já há muito, em 2008/2009, por exemplo, estariam enfrentando depressões.
O dia em que houver dirigentes nacionais que entendam o potencial adormecido do país, reconheçam o mercado de massa como ativo e não ônus fiscal, vejam a educação básica e técnica como o princípio da transformação que já tarda, sejam menos dogmáticos com a gestão da política econômica, essa questão de esquerda vs direita, aí talvez possamos dizer que não há nada garantido de que este século será da China, como o século 20 foi dos EUA. Por que não também do Brasil?