Tal como estamos há muito tempo, as discussões sobre a expansão do Bolsa Família, de modo a incluir parte dos trabalhadores informais, e para afrouxar a regra do teto dos gastos do orçamento federal, a fim de o governo ampliar o investimento em obras de infraestrutura, tratam de consequências e não de causas.
A economia informal é como o jogo do bicho – todo mundo sabe que existe, hoje menos atrativo como negócio marginal devido à concorrência das loterias oficiais, mas finge ignorar. A minoria afortunada também prefere ou preferia ignorar a pobreza.
A informalidade no mercado de trabalho é causa e efeito da pobreza endêmica. Programas de transferência de renda como o Bolsa Família, com ticket médio por moradia de R$ 197 ao mês, são tão somente um paliativo. Não preparam o assistido para buscar a própria autonomia nem cuidam da criação de ofertas de empregos formais.
Falem o que quiser, a verdade é que nossa economia é pequena em relação ao potencial tanto dos ativos naturais (reservas minerais, áreas agricultáveis), quanto da dimensão territorial e o tamanho da população. A subutilização desses recursos, vis-à-vis às demandas da população, sobrecarrega a economia existente, por sua vez, aquém do setor público criado para organizar as instituições.
Essa é a realidade que temos e que reclama solução. A pandemia fez algumas dessas verdades emergirem, como o vulto da informalidade e a ignorância dos formuladores do governo sobre a sua extensão. O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse ao Congresso, em março, que “com 3, 4, 5 bilhões de reais a gente aniquila o coronavírus”, além, vejam só, de reformas e autorização para vender a Eletrobras.
É por coisas assim que a pobreza é endêmica. É também o motivo de ele propor o auxílio emergencial de R$ 200, quando a Câmara passou a reclamar medidas mais concretas. Virou R$ 600, não os R$ 500 que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, defendia, ao Bolsonaro sacar que era jogo jogado e buscar para si a paternidade do programa.
Pós-verdade versus fatos
Fala-se nos EUA e na Europa que as redes sociais criaram o que se chamou de “pós-verdade”, significando que os fatos teriam passado a importar menos que a opinião do que as pessoas escolheram acreditar como verdade. Daí a força das narrativas, o meio que políticos como Trump e Bolsonaro usam para contornar e pilotar situações adversas.
É vero, desde que a narrativa guarde alguma relação com os fatos – a precarização da classe média nos EUA e na Europa, por exemplo, é uma das razões de o eleitorado buscar novas opções políticas.
No Brasil, precarização significaria retroceder em relação a algo que tivemos. É pior. A massa de pobres e remediados, representando mais de 70% de toda a população, é o que sempre existiu.
Um quadro difícil de contornar com a economia estagnada, crescendo em torno de 1% desde a recessão de 2014 e 2015, sem orçamento para o investimento público, e há meia década na expectativa de o setor privado puxar a economia graças a reformas necessárias mas sem ter a capacidade, por si, de mudar a situação. E por que não? Porque o Estado e a sociedade são partes afins, não adversários entre si.
Visíveis só quando votam
Voltando à realidade dos informais que o ministro Guedes chamou de “invisíveis”, embora estejam logo ali à vista no trajeto de casa ao trabalho, servem muitos na cozinha, explicam o elevador de serviço.
O invisível entrou na política para ficar quando Bolsonaro apurou que são eles que elegem candidatos a postos majoritários (prefeito, governador, presidente), não frações sociais como dos evangélicos, dos ruralistas, as corporações etc. Lula já havia intuído isso, ao fazer do Bolsa Família o que os tucanos que o conceberam deixaram de atentar devidamente. Alivia a pobreza, sem resolvê-la.
Mas rende voto pra caramba. Só que em 2003, quando o Bolsa Família despontou, o país vinha de oito anos de ajuste fiscal, a economia estava organizada, a China se tornava o comprador global de todas as commodities. Hoje, o bônus fiscal foi comido, o setor público está exaurido, a China continua comprando, mas há mais vendedores.
Crescimento é que importa
A quadradura do círculo que agita os políticos hoje em Brasília é o desafio a enfrentar. A economia precisa voltar a crescer, o que tem acontecido graças ao anabolizante das ações excepcionais, em especial o auxílio emergencial. Ele pôs a economia em movimento, trouxe popularidade a Bolsonaro e... Arruinou as contas públicas.
O que fazer, respeitando a emenda à Constituição do teto do gasto do orçamento federal? Só cortando gasto. Onde? O que sobrou são os benefícios do funcionalismo para acomodar mais gente numa versão ampliada do Bolsa Família, e nem assim haverá dinheiro suficiente.
Esse é o enigma. E outra realidade: sem crescimento econômico não haverá orçamento para todas as demandas. Há exaltação com o ritmo da retomada, o Banco Central prevê crescimento de 3% em 2021 – 0,8% na média dos quatro trimestres do ano que vem. Será possível?
Pode ser e mesmo assim não será grande coisa. Equaliza com a média dos últimos quatro anos, não superior a 1,5% de aumento anual.