O tempo passa, a população se entretém com as tretas semanais que o presidente vai criando para deleite da crônica política e assim sugerir que está no controle da situação e... o tempo vai passando, sem deixar espaço para cobranças sobre o que será do país. A dúvida vem de longe e transcende a pandemia, que só agravou a situação.
Não é construtivo colocar toda a energia do país para tratar tão somente de disciplina fiscal, que nem é o problema central à frente dos governantes eleitos para gerir o setor público em seus níveis federativos, conforme orientações determinadas pelo legislativo – e não o contrário, como tem sido no nosso presidencialismo, em que o presidente governa com base parlamentar arrendada depois de eleito.
Atesta-se que o problema fiscal no Brasil é de governança política e não de gasto descontrolado, gerando déficits orçamentários pagos com a emissão de dívida pelo Tesouro Nacional, por meio de notícias como a que diz que os “partidos vão ao STF para obrigar o governo a comprar vacinas contra COVID”. O Executivo se obriga a fazer o que o Congresso orienta, dispensando-se julgamento da corte suprema.
Ah! Mas ele só quer cumprir o programa que o elegeu, dizem alguns. Trata-se de erro enraizado no país, e nos EUA de Donald Trump, em quem Jair Bolsonaro se inspira, quando falta maioria parlamentar ao presidente para aplicar o programa com que se elegeu. Lá, o Partido Republicano tem maioria no Senado e não na Câmara, controlada pelos Democratas, do opositor Joe Biden. O déficit cívico de Trump está em sua recusa em admitir que pode muito, mas não pode tudo.
Aqui é pior, já que a Constituição de 1988 desfibrou o poder do governo, pela memória do constituinte sobre o arbítrio no tempo do regime militar, outorgando autonomia financeira a meras divisões da gestão pública. Assim se fez para prevenir surtos de autoritarismo.
Depois, o Congresso aos poucos cedeu sua autoridade legislativa e de controle a áreas orçamentárias, como a saúde e a educação, cujas verbas são automaticamente fixadas como percentagem da arrecadação, livres de qualquer remanejamento. Se os gestores e políticos fossem movidos a boa-fé, estaria ok. Sabemos que não está. Seria simples, relativamente, de resolver se isso não ensejasse outros problemas.
O progresso foi cancelado
O problema se tornou complexo não porque o Congresso seja fraco, ou o presidente, despreparado – situações em que um bom programa eleitoral resolveria. Grave é que se perdeu a memória dos motivos do constituinte de 1988, assim como o sentido do progresso.
Ele estava embasado nos planos nacionais de desenvolvimento então concebidos pela coalizão civil-militar do autoritarismo. O termo desenvolvimento se tornou maldito, ainda mais ao ser parcialmente reeditado de forma inepta pelos governos petistas depois de 2008.
Tenta-se desde então alçar o paradigma liberal, mas mais com senso libertário, que vê o planejamento e a ação pública como projetos de comunistas, não como o que são nas democracias do Ocidente: a união entre o empresariado e a burocracia de Estado, mediados pelo voto e guiados pelo princípio do “bem comum”. Esse é o fator deturpado a partir da onda de desregulamentação iniciada nos anos 1970 nos EUA e a causa explícita da revolta do eleitorado e volta do populismo.
A verdade é que no Brasil o desenvolvimento econômico e social se perdeu nas brumas do ocaso do regime militar, acabou com a moratória da dívida externa e hiperinflação, e nunca mais ressurgiu.
Juro baixo veio para ficar
Hoje, quando à custa de muito sofrimento o Banco Central chegou à inédita situação de juros básicos vulgo Selic de 2% ao ano, a maior ameaça é sermos forçados a regredir pela má compreensão do mercado financeiro e de economistas que se assustam com a própria sombra.
No fundo, temem pelo fim da atividade de arbitragem dos fundos que administram, em boa parte resultante da compra e venda de papéis do Tesouro. Ela vem de juros altos acima da inflação. Mas a estagnação que cerceia o crescimento econômico no país há uma geração está nos juros sempre acima da taxa de crescimento nominal do produto. O que ameaça a Selic é a má governança fiscal e sua sequela, a inflação.
O IPCA está em alta, movido pela alimentação, mas esse é um evento temporário, como diz o economista Fernando Montero. Sem o auxílio emergencial, ela cessará, e voltará o viés de longo prazo do PIB estagnado, dependente do consumo de áreas que investem pouco ou não investem, importando as partes e componentes mais tecnológicos.
Sem gestão só há enganação
Com tal situação, não há crise no sentido do gasto descontrolado, há uma crise de falta de governança, e, onde ela existe, é inepta. É o que torna absurdo discutir reformas que não visam reformar a estrutura disfuncional do Estado, visam só conter temporariamente o seu custo. E nem isso elas conseguem devido à má governança.
O que dizer da descoberta de que a lei orçamentária de 2021 prevê a contratação de quase 51 mil funcionários ao custo anualizado de R$ 4,5 bilhões? O grosso dos cargos é para funções dispensáveis pela tecnologia. Não há como discutir aumento de imposto assim.
Onde inexiste gestão, a política econômica se torna uma falácia. A da Dilma ao menos buscava ligar a ignição do crescimento. A atual, dita ‘liberal’, busca atender aos devaneios de um despreparado, apoiado por uma base política fisiológica. Não se muda isso com tapinha nas costas de políticos sem ‘good common sense’ – e sem engajar o lado lúcido, que existe, da alta burocracia de Estado.