O drama de pacientes de COVID em Manaus, morrendo asfixiados pela falta de cilindros de oxigênio devido à incúria de governantes ora relapsos, ora negacionistas, que fazem da desgraça instrumento de ação política, é outro flagrante do país em franca decomposição.
Está visível em toda parte: no Rio, onde a polícia se confunde com milícia e a corrupção infectou todos os últimos governos municipais e estaduais; em São Paulo, em que a população vivendo na rua cresce com o fim do auxílio emergencial; na falta de emprego a todos que queiram trabalhar, sequela da economia estagnada e do investimento murcho há 40 anos. O mundo avança, até a África; o Brasil regride.
O contraponto perverso desta situação são as decisões de governos e parlamentos sem nexo com a necessidade da população que os elege e os sustenta. Em São Paulo, os vereadores aprovaram e o prefeito sancionou o aumento de seus vencimentos. No Rio, o prefeito eleito autoriza jogos no Maracanã com torcida e depois volta atrás, agenda para julho o Carnaval cancelado em fevereiro, embora não haja nada que garanta a segurança sanitária, já que o governo federal chegou a 2021 sem vacina, sem seringa, debochando da pandemia.
O país sofre, de forma endêmica, da carência de visão de um futuro de prosperidade, o “sonho” coletivo de grandeza que marca todos os casos de desenvolvimento bem-sucedidos no mundo. Com a pandemia, as ilusões caíram por terra, conforme a ironia de uma figurinha de rede social: “O caminho é longo, mas a derrota é certa”.
Assim já estávamos antes da pandemia – sem planejamento de longo prazo, estigmatizado pelo fracasso econômico da ditadura, sem plano de redenção das mazelas econômica e a social, função uma da outra. E ainda houve a desventura de um governo desarvorado.
O que esperar de um presidente que, em meio a outra onda de mortes e colapso da rede de saúde, põe em dúvida a eficiência das vacinas? E do ministro da pandemia afirmar, a seu lado, que a ciência ainda não comprovou a eficácia do uso da máscara e do isolamento social?
Para Eduardo Pazuello, o general chamado por Bolsonaro para fazer mais e melhor que seus antecessores médicos, sol, felicidade, boa alimentação e esporte combatem COVID-19 – prescrição que nem ele, infectado também pelo vírus, aparenta praticar. Basta olhá-lo.
O culto à ignorância e ao atraso é mal endêmico no Brasil.
O país idílico dos ortodoxos
Como a miséria e suas implicações estão “normalizadas”, a maioria, inclusive os pobres, não nota o agravamento social. Essa é a única realidade que conhecem, e os mais afortunados a ignoram, alguns até provavelmente sinceros. O ministro Paulo Guedes se disse surpreso com o tamanho da população que vive na informalidade, os 67 milhões habilitados a receber o auxílio emergencial, expirado em dezembro.
Como Guedes, o grosso dos economistas ouvidos pela imprensa também não se importa em saber como vivem os mais 70% da população adulta com renda abaixo de cinco SM, os mais afetados pela pandemia.
Mas é em nome deles que pedem ao Banco Central que volte a subir a taxa de juro porque a inflação aumentou e, de Paulo Guedes, que aperte o gasto com políticas sociais para acalmar o “mercado”. O país estaria à beira do “precipício fiscal” – dizem, com voz e cara de apreensão. Só não se abalam com o país real.
Nivelados pelo pouco saber
É aí que a desídia do governo Bolsonaro com a pandemia se mistura com notícias como a da desistência da Ford de produzir no Brasil. A empáfia de ministros nivelados pelo saber de um presidente que sabe pouco sobre tudo os impede de intuir as mudanças em curso no mundo.
A Ford, entre as montadoras, é a mais séria candidata a ter o fim inglório da Kodak, depois de ter desenvolvido e patenteado o filme digital. Hoje, no setor automotivo, a tendência é que sobrevivam as indústrias com capacitação em motores elétricos. A ruptura deve ter ápice em no máximo uma década – transformação, associada às energias eólica e solar, que levará ao começo do fim da era do petróleo. O que será do pré-sal? Da Petrobras. Dos postos?
O setor bancário é outro a ser transformado ainda antes. Aliás, já está mudando, fechando agências, migrando operações para o celular, demitindo funcionários. Era o que o BB anunciou e Bolsonaro vetou.
Nenhuma atividade será poupada – o varejo físico, a interação das pessoas com os serviços públicos, as transações, como consequência da identidade única digital. Neste ritmo, o emprego vai diminuir.
Novas ideias sacodem o mundo
Reportagem de capa da revista inglesa The Economist desta semana destaca o novo mundo a caminho, que em países como China, Coreia do Sul, parcialmente a Índia, nem é novo, é fato, com a novidade de os EUA correrem atrás, ameaçados de decadência sem mudança rápida.
“Durante a história do capitalismo, o rápido avanço tecnológico tem sido a norma, mas na década de 1970 o progresso desacelerou”, diz o Economist. “Uma enxurrada de inovações recentes em biologia sintética, inteligência artificial e tecnologias de energia pode significar que esta ‘grande estagnação’ está terminando.”
O mundo testemunha um boom de investimentos em tecnologia, afirma a revista, “novas ideias estão sendo adotadas rapidamente, muitas vezes por adversidades como a pandemia e o aquecimento global”.
É o risco que nos ameaça: não planejar o crescimento, sobretudo de atividades que criam empregos; pôr ficha demais no agronegócio (que também se transforma) e sossegar; ignorar o atraso da indústria.
Produtos primários garantem a solvência externa do país, mas pagam pouco imposto e não são grandes geradores de empregos. Se tudo isso estivesse na pauta das atenções nacionais, a letalidade da pandemia talvez fosse menor, ou, ao menos, haveria mais condições de amparar o emprego e as atividades empresariais, assim como a inovação.
A vacina vai chegar, é certo; cloroquina é charlatanice; boca-dura de radicais só assusta político covarde, e, falando nisso, já tarda o Congresso voltar do recesso, como defende o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Agora feche os olhos e imagine o Congresso submisso... Manaus e Rio de Janeiro antecipam tal cenário. E daí?