Em tempos de fake news e ressignificação da verdade, o melhor é se antecipar ao roteiro de distrações numa semana em que o presidente, em horário de expediente, andou a cavalo e passeou de moto, como se não lhe dissessem respeito a retração do PIB no segundo trimestre, -0,1%, outra taxa acachapante de desemprego, 14,1%, e a desinibição do Centrão na ordenha das rubricas leiteiras federais.
Relevantes seriam os eventos que ele convocou para o feriado de 7 de setembro, um em Brasília, outro em São Paulo – um novo grito de independência, ele vem sugerindo. Do quê ou de quem? Talvez da lei, que diz persegui-lo, assim como dos que lhe cobram resultados.
Os organizadores dos eventos, entre produtores de soja, frotistas de caminhões, mercadores da fé e industriais sem indústria, além de fardados à paisana, falam em hostilizar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso em Brasília e mobilizar 2 milhões de apoiadores na concentração marcada para terça-feira à tarde, na Avenida Paulista, em São Paulo. Bolsonaro disse que vai aos dois.
Como se trata, ele disse, de eventos “para mostrar quem manda no Brasil”, portanto, políticos e não agendas oficiais, supõe-se que o Ministério Público Eleitoral procurará saber quem banca os gastos com o avião presidencial, equipes de segurança, etc.
Há notícia de milhares de ônibus fretados pelo combo de apoiadores para levar militantes de fora a São Paulo. A certeza é que não haverá 1 milhão de pessoas na Paulista pela singela razão de que não há espaço físico que acomode tanta gente na avenida.
Os memes de internet falam que o ato será “gigante”. A medida é o protesto de 15 de março de 2015 pelo impeachment de Dilma Rousseff, que teria reunido 1 milhão de pessoas, como a PM informou. MBL e Vem Pra Rua, organizadores do ato, voltarão à Paulista dia 12 contra Bolsonaro. É o Brasil dando voltas sem sair do lugar.
Muitos avaliam o ato de março de 2015 como o que animou a Câmara a abrir a ação de impeachment contra Dilma. Por analogia, Bolsonaro imagina a Paulista lotada para tentar impichar no berro o STF, em que é alvo de dois processos, e inibir o apetite do Centrão, em especial na Câmara, que o apoia tal como amante ambiciosa.
És tu, Chávez?
Dificilmente a intimidação dos tigrões de palanque porá canga no STF, por mais que muitos reprovem o estilo prima-dona de ministros da corte, nem no Congresso, especialmente o Senado presidido pelo senador Rodrigo Pacheco, a Casa que vem mostrando uma independência institucional que contrasta com o amesquinhamento da Câmara.
A multidão esperada pelos bolsonaristas na Paulista também precisa ser relativizada. Com 2,8 quilômetros de extensão e 47 metros de largura máxima, ou 131 mil metros quadrados, incluídos o espaço de bancas, pontos de ônibus e outros obstáculos, o Datafolha estimou em 2015, recorrendo a matemáticos e urbanistas, a lotação máxima de 210 mil pessoas na Paulista, considerando-se trechos mais abertos.
Isso com quatro pessoas por metro quadrado. Com sete, lotação de vagão do metrô em horário de pico, chega-se a 910 mil pessoas. Mas aí tem que se supor todo mundo agarradinho e ninguém se mexendo.
Reunir 210 mil pessoas não é pouca coisa. A questão é o que fazer com elas durante e depois. Bastaram o risco de badernas e a alusão à invasão, em 6 de janeiro, do Capitólio por trumpistas armados para grandes entidades empresariais, puxadas pela Febraban, saírem em defesa da democracia e repelirem aventuras. Como Bolsonaro dar um “ultimato”, na sexta-feira, aos ministros Moraes e Barroso, do STF – “aqueles que ousam nos desafiar”, ele disse. És tu, Chávez?
Contribuição à degradação
A verdade é que Bolsonaro busca compensar com distrações o que seu governo tem para mostrar: o saldo pavoroso de mortes na pandemia; a sua participação na tragédia, como vem provando a CPI do Senado; o fiasco do crescimento econômico que iria surpreender o mundo, como o ministro Paulo Guedes recita tomando seus ouvintes como parvos; a volta da inflação, dos desempregados e despejados vivendo nas ruas, do risco de racionamento de eletricidade e até de água etc.
Ao fim e ao cabo, talvez se reconheça em Bolsonaro algum mérito: o que ele toca apodrece e expõe os cúmplices com a degradação moral do país, que vem de longe – dos partidos fisiológicos vulgo Centrão e igrejas com fins lucrativos aos grupos econômicos decrépitos e os mercadistas assanhados com as idas e vindas do ‘capinancismo’.
A civilização na Europa brotou das ruínas de guerras religiosas, da opressão camponesa, da ignorância, exploração da fé e a venda de indulgência pela Igreja. A ideia é que o iluminismo desperta a cada tempo depois da dor, fazendo emergir o progresso redentor.
A declaração do presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Walmor Oliveira de Azevedo, na sexta-feira, foi eloquente nesse sentido, ao pontuar que o dia 7 “contribui para o exercício qualificado da cidadania”. Disse mais: a liberdade “está relacionada ao fortalecimento das instituições que sustentam a democracia”. Os manifestos empresariais vieram no mesmo tom e isso é raro: o país chamar para si o que a política deixou de resolver.
Como está não fica, sabem todos, inclusive Bolsonaro ou faria algo melhor que espalhar cizânia e forçar maioria parlamentar a soldo.
O resultado não é bom para ele nem para ninguém, como se viu com o pacote do Imposto de Renda, aprovado sem que os distintos deputados soubessem o seu inteiro teor e que desagradou a todos os setores.