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Presidente da Rússia, Putin bagunça o cenário internacional

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A invasão da Ucrânia transcende a análise simplista de que o russo Vladimir Putin seja um autocrata implacável, nostálgico do antigo passado soviético. Ex-agente da KGB, ele tem jeito, cara e boca dos vilões da antiga União Soviética dos filmes da franquia James Bond.





Retratá-lo como um comunista malvado saído da Guerra Fria para o século que tende a ser das luzes, porém, não ilumina o que o alçou de mero coadjuvante da história a protagonista. E, não obstante seu passado na KGB, está mais para líder ascendente da extrema-direita mundial, incluindo Donald Trump, que para um comunista temporão.

Megas Putin, como o chinês Xi Jinping e o indiano Narendra Modi, minis, como o húngaro Viktor Orbán, farsantes, tipo Donald Trump, e trainees, como Nicolás Maduro e Jair Bolsonaro, têm o iliberalismo como denominador comum. Mas muito mais os desune que aproxima.
 
À exceção da China, que não conheceu eleição livre em sua história milenar, eles se elegeram pela liturgia do chamado “mundo livre”, promovida pelas suas instituições – OCDE, FMI, BIS, Banco Mundial, think tanks privados, universidades dos EUA e Inglaterra e a imprensa mainstream (tradicional).





Aos poucos, apropriam-se das instituições que ancoram a democracia liberal, como a corte suprema, a imprensa, disseminam fake news nas redes sociais, mudam zonas eleitorais, e passam a governar sem oposição, abastardando a maioria difusa, mantida ignorante pela imprensa controlada, além de enfeitiçada por ressentimentos criados (contra imigrantes, minorias étnicas e de gênero, ameaça comunista ou imperialista americana, conforme a conveniência do autocrata).

O ponto central, que não justifica a invasão de um país soberano, é a oposição à ordem global liderada pelos EUA, especialmente a sua concepção do “fundamentalismo de mercado”, expressão frequente nos estudos e debates de Oren Cass, diretor do think tank conservador, mas não iliberal como Trump, American Compass, ao explicar pela sua ótica a decadência da economia americana e a polarização política.

Aplicada às relações internacionais, foram as “ilusões liberais” que causaram a crise na Ucrânia, conforme artigo de Stephen Walt, professor da Universidade de Harvard, publicado em 19 de janeiro, muito antes, portanto, da ação extrema anunciada por Putin. É essa a discussão relevante e ela nos diz respeito, enquanto maior e mais importante nação do continente por ora sem rumo nem direção.




 

Do realismo às ilusões

 
O papel dos atores no confronto inédito na Europa desde a Segunda Guerra ajuda a explicar a reviravolta russa insinuada a partir da dissolução da União Soviética, em 1991, e a independência de algumas repúblicas, como Letônia, Lituânia e Estônia, no Báltico, Armênia e Geórgia, na Ásia, e Ucrânia, cellula mater na “mãe Rússia”.

Até então, diz o professor Walt, predominavam no mundo as relações de poder baseadas no “realismo”, o reconhecimento de que as guerras ocorrem porque não há autoridade central que proteja os Estados uns dos outros e impeça-os de lutar se assim o desejarem.

Crítico, ou realista como se define, ele diz que “se os EUA e seus aliados europeus não tivessem sucumbido à arrogância, ilusões e idealismo liberal e, em vez disso, confiado nos insights centrais do realismo, a crise atual não teria ocorrido. De fato, a Rússia provavelmente nunca teria tomado a Crimeia, e a Ucrânia estaria mais segura hoje. O mundo está pagando um alto preço por confiar em uma teoria falha da política mundial”. Eis um bom resumo da história.





Autoridades americanas e europeias acreditavam que a democracia liberal, os mercados abertos, o estado de direito e outros valores liberais estavam se espalhando, criando uma ordem global. “Em vez de competir por poder e segurança”, diz ele, “as nações do mundo se aplicariam em enriquecer numa ordem liberal cada vez mais aberta, harmoniosa e baseada em regras, moldadas e guardadas pelo poder benevolente dos EUA”. Só que essa “visão rósea” foi parcial.

 

A paz dos desconfiados

 
Em vez de um Plano Marshal, nome da ajuda a fundo perdido dos EUA para a reconstrução da Europa, ambos incorporaram ao acordo militar de proteção mútua, a Otan, as repúblicas egressas da finada URSS, o governo Obama instalou mísseis voltados contra a Rússia na Polônia, ex-satélite soviético, e foi prometido à Ucrânia o guarda-chuva militar que nunca se concretizou.

A invasão unilateral do Iraque pelos EUA, a derrubada do ditador líbio Muammar Al-Qaddafi, aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, com abstenção da Rússia, para proteção a civis, não para mudar o regime, tudo isso fez “os russos se sentirem enganados”, segundo o ex-secretário de Defesa Robert Gates. Tais incidentes, diz Walt, explicam por que Moscou insiste em garantias por escrito, como a de que a Ucrânia não se filiará à Otan – garantias ignoradas por Joe Biden, presidente dos EUA, e seus aliados europeus.





Nada alivia para Putin. Dificilmente, ele deixará de ser visto como líder de um estado desonesto, a invasão legará sequelas horríveis que deverão desestabilizar o mundo nos próximos anos. Uma delas já se delineia nos EUA, provocada pelo maior fracasso da tese de que a liberalização econômica bastaria contra o nacionalismo iliberal – o fantástico desenvolvimento da China à custa do declínio dos EUA.
 
 

A América que quer mudar

 
A economia dos EUA ecoa mundo afora pela imprensa, pelos grandes bancos de Wall Street, as Big Techs, alardeando a dominância do que se convencionou chamar de neoliberalismo. A América profunda, que fala, entre outros, pelos thinks tanks solidamente conservadores Heritage e American Compass, pensa diferente. Vale a pena ouvi-la.

Defende política industrial, quer de volta as fábricas que foram para a China, vedar transferência de tecnologia, diz que as Fortune 500 “não se importam se seus investimentos beneficiam ou prejudicam a América e os trabalhadores americanos”, quer tributar mais os ricos, diz que Twitter, Facebook, Instagran fazem mais mal que bem, veem os libertários hayekianos como nefastos, e por aí vai.





Merece atenção que os intelectuais e ativistas da América profunda não dão um dime por Trump e radicais adeptos de ideias (replicadas pelo bolsonarismo) de fechar fronteiras, dar armas a todos, acabar com o welfare state, expurgar o identitarismo. É mais que a marca de fantasia MAGA, de Faça a América Grande Outra Vez, e é muito forte no meio-oeste, embora ainda sem um líder nacional como Trump.

O conflito entre EUA e China, aguçado pela rudeza da Rússia, infla as teses, digamos, desenvolvimentistas do novo conservadorismo, que se assemelham ao bidenomics. O que virá está nebuloso. Certo é que a política econômica vai mudar a pretexto de enfrentar a ameaça dos “novos bárbaros”,  mas, de fato, em resposta à enorme insatisfação social nos EUA e Europa. O eco das mudanças já ecoa por aqui.