Useiro na tática de criar factoides sempre que os eventos de seu governo não saem como esperado, Jair Bolsonaro esgarçou a corda da tolerância absurdamente elástica das instituições da República ao envolver as Forças Armadas na suspeição da urna eletrônica e pôr em causa a idoneidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A eleição será no ainda distante 2 de outubro, com segundo turno, se necessário, no dia 30 seguinte, mas, se já se diz preocupado com as urnas eletrônicas e com o eficiente sistema de apuração de votos pelo TSE com o qual se elegeu em sete eleições, assim como aos seus filhos senador, deputado e vereador, sem nunca reclamar, então deve ter elementos para se sentir derrotado de véspera.
Certamente, dada a timidez das reações aos faniquitos que marcam a sua atabalhoada presidência, não imaginava encontrar nos tribunais superiores, depois de quase quatro anos de campanha deliberada para minar a credibilidade do Supremo Tribunal Federal (STF), capacidade de resistência a seu ímpeto autocrático, inspirado em Donald Trump.
O ex-presidente dos EUA perdeu a eleição e incitou uma turba de radicais a invadir o Congresso para tentar impedir a proclamação de Joe Biden. Pressentindo uma eleição apertada, Trump passou a lançar suspeitas sobre a higidez do sistema eleitoral dos EUA com mais de um ano de antecedência. Bolsonaro segue tal enredo.
A diferença é que Trump tentou aliciar as Forças Armadas e não foi bem-sucedido. Os detalhes sórdidos da trama golpista estão no livro recém-lançado pelo seu ex-secretário de Defesa Mark Esper.
O chefe do Estado-Maior Conjunto, general Mark Milley, já havia revelado em 2021 ter recusado ordens para atirar em manifestantes contrários em Washington e que chegou a temer que ele preparava um golpe. Milley disse à presidente da Câmara, Nancy Pelosi, suspeitar de que Trump tivesse sofrido um declínio mental depois da derrota.
Bolsonaro tem apoio de generais de pijama palacianos e do ministro da Defesa, o também general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, ao menos no caso do embate com o TSE. Não é certo que a maioria dos generais do alto comando do Exército esteja confortável com essa situação.
Intuindo a desgraça em marcha na Europa, Albert Einstein disse na conferência de desarmamento de 1932 que a desorganização política colocara uma “navalha nas mãos de uma criança de 3 anos”. No Brasil de hoje, o insight de Einstein tem algo de presciente.
A quebra da liturgia
A verdade é que não se vive tempos normais no país, como bem disse o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco: “É inimaginável pensar que seja necessário defender o Judiciário de ataques sem fundamento”. O erro foi lá atrás, quando o ministro Luis Roberto Barroso supôs que convidando as Forças Armadas para participar da comissão técnica que estuda a segurança do sistema eleitoral poderia neutralizar os ataques contínuos de Bolsonaro às urnas eletrônicas.
Precisou o atual presidente do TSE, ministro Edson Fachin, afirmar que eleição é assunto para as “forças desarmadas”, isso depois de o ministro da Defesa ter pedido audiência com ele para falar do tema e avocar toda a correspondência relativa ao assunto entre o tribunal e o Exército. Embora seja general, o ministro Paulo Sérgio representa o governo e não mais o Exército, do qual foi comandante, que é uma instituição do Estado e não do presidente.
Foi mais a quebra da liturgia entre os poderes da República, que são apenas três – o Judiciário, o Legislativo e o Executivo –, que o risco de subversão militar o que turvou o ambiente. Se antes havia dúvidas, agora há a convicção nas cortes superiores e no Congresso de que Bolsonaro atiça e é atiçado por setores militares, sobretudo pelo generalato palaciano, a endurecer a pressão sobre o TSE.
Que a sociedade reaja
O que fazer? A mensagem de comandantes de tropas a lideranças do empresariado é de que a força não tem nada a ver com as armações palacianas. Mas há o risco, à falta de uma reação contundente da sociedade organizada, de arruaça contra a legitimidade da apuração se as urnas negarem a Bolsonaro a reeleição.
Um pouco do cenário conturbado também se deve ao caráter binário da eleição em que um dos lados opera sem escrúpulos, ao gosto dos interesses nebulosos que movem a política desde os governos do PT e de Michel Temer, e o outro lidera as pesquisas, mas não credenciou até agora interlocutores de sua total confiança.
Lula confia em Geraldo Alckmin como vice para desfazer receios do mercado financeiro, os tais farialimers, e reabrir os caminhos aos grandes empresários, fechados depois do impeachment de Dilma e de sua prisão pela Lava Jato.
Não atentou que Geraldo, como é chamado, nunca circulou com desenvoltura junto ao capital e entre os chefões dos partidos. Sem a máquina do PSDB, hoje uma sombra do que já foi, é só um político conservador provinciano pouco sagaz, ou não teria sido passado para trás pelo seu protegido João Doria.
Para relançar o Brasil
O que vem pela frente dependerá de articulações e consensos entre as forças reais da política e da economia em conjunto com as elites da burocracia federal, o Judiciário e os governadores. Certo é que aventuras golpistas são menos prováveis hoje do que já foram.
Quanto antes se aclare o ambiente mais tempo haverá para cuidar do que realmente importa: convencer as novas formações da Câmara e do Senado, além do Executivo, da necessidade de um programa que suste e reverta a longa e silenciosa decadência da economia. Não haverá tal consenso sem governo e burocracia aptas, mais a inteligência nacional, para formular e, sobretudo, para implantar outra missão.
A nota promissora é que as articulações estão em processo. Plano e gente motivada, inclusive no exterior, também há. Falta o gatilho.
Existindo tais condições, artigos de extração fundamentalista na imprensa, como os que cancelam críticos do teto de gasto público, indiferentes ao fato de que não há mercado forte sem um Estado eficiente, tenha ele o tamanho que tiver de ter, serão o que são: meramente ridículos.
O relançamento do Brasil admirado no mundo e cobiçado por todos os capitais, no ano do bicentenário da independência, está na mão. Mas os envolvidos, candidatos e eleitores, em suma, nós mesmos, têm de se convencer de que somos os responsáveis pelo resultado, e não os demagogos de plantão e os vendedores de ilusões.