Agora é com Lula, depois da barbárie mais primitiva, e mais cedo que o previsto começou a catarse, que se espera seja breve, para devolver o país, 40 anos depois do fim do desenvolvimento econômico acelerado, de volta ao caminho da prosperidade. O percurso será acidentado.
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Novidade obsoletaEmbargos expõem escalada da guerra comercial entre Washington e PequimA voz rouca das urnasA derrota de Bolsonaro foi apenas o primeiro capítulo do embate que subsiste intramuros junto à inteligência nacional sobre o que busca o interesse difuso, especialmente a maioria de pobres, a cada eleição. Em síntese, clama-se por progresso compartilhado e duradouro.
Vencedor e vencido simbolizam redenção e purificação do conjunto da sociedade mais que as suas histórias pessoais, coincidindo com outro ciclo de grandes transformações no mundo que transcendem fronteiras e a compreensão corrente, se ela se circunscrever aos eventos efêmeros que levaram à queda e ascensão de ambos neste curto passado.
A realidade é que o país está à mercê de predadores indiferentes com a ideia da construção de uma potência econômica regional desde que faliu, nos anos 1980, o modelo de desenvolvimento puxado pela indústria de transformação e por grandes obras de infraestrutura de transportes e de geração de energia. Desde então não se pôs nada no lugar.
Perdeu-se tempo demais com os programas de estabilização monetária e fiscal, que se tornaram um fim em si mesmos, não meio para devolver ao Estado a capacidade de planejamento e coordenação do desenvolvimento, alinhando capitais nacionais, externos e públicos em regime aberto e cooperativo, mediados pela política, visando à prosperidade comum e a projeção de poder soberano, sobretudo na América Latina.
É esse o contexto da disputa precoce entre Lula, que prometeu tornar permanente o Bolsa-Família de R$ 600, sem haver provisão orçamentária lato sensu até para o bônus regular de R$ 400, e os que se aliaram em causa do bem maior do Estado de direito, não por compartilhar ideias sobre como mover o crescimento econômico sem traumas nem distorções.
Ideologia da economia débil
A falta de coesão em torno de princípios comuns pluripartidários de longo prazo, que já dura exatos 38 anos, é o que fez moldar a malaise que debilitou o dinamismo da economia, levando interesses econômicos e seus associados no Congresso a desistirem do desenvolvimento. Ele foi o mais rápido do mundo, do pós-guerra ao fim dos governos militares, e serviu de inspiração à modernização da China a partir de 1978.
Mas no Brasil virou conceito maldito, e economistas de prestígio, com raras exceções, passaram a dizer que não deveríamos nos preocupar com a produção local, se fosse mais econômico importar bens acabados.
Com o fim do planejamento de Estado para facilitar o desenvolvimento privado, que deveria vir acompanhado da promoção social por meio da educação da força de trabalho e de pesquisa aplicada, criaram-se duas forças dominantes na economia, ambas sob o guarda-chuva estatal: a do agronegócio exportador, estabelecido com forte base parlamentar para proteger seus interesses, e a dos operadores dos papéis de dívida do Tesouro Nacional, vulgo “mercado”, cuja opinião sobre os rumos da política econômica se tornou hegemônica na imprensa.
A ascensão dessas atividades coincidiu com a expansão da ideologia neoliberal do Estado mínimo e da desregulamentação – corrompida como fundamentalismo de mercado, hoje em baixa nos EUA – e a decadência da indústria, que migrou para a Ásia, onde a produção de bens físicos e altamente tecnológicos é política de soberania nacional.
O contexto da visão de Lula
Esse é o contexto do discurso de Lula que chocou o tal mercado. Ele defendeu tirar o gasto com o novo Bolsa-Família do orçamento federal submetido à regra do teto, além da provisão para dar aumento real ao salário mínimo e outras despesas sociais. Total: R$ 175 bilhões/ano.
O mercado chiou, apesar de ter se calado com os desaforos fiscais de Bolsonaro e Guedes, além de as suas promessas serem as mesmas do seu rival. Isso explica o questionamento de Lula: “Por que as pessoas são levadas a sofrer para garantir a tal da estabilidade fiscal? Por que as mesmas pessoas que discutem teto de gastos com seriedade não discutem a questão social neste país?”. As questões são procedentes.
As ações assistencialistas são o resultado de um sistema econômico que deixou de gerar bons empregos há quase meio século, que trata o Estado como um fardo dispensável e não como um sistema que se tornou disfuncional para a maioria, além de indispensável para organizar as prioridades dos investimentos privados e a eficiência dos mercados.
A garantia de uma renda básica, dentro ou fora do orçamento, viria com qualquer dos candidatos. Com Lula, a diferença é que isso é parte de um processo que tem o crescimento com investimentos em indústrias de ponta e infraestrutura como pivô a ser construído dentro de marcos institucionais da solvência das contas fiscais, das contas externas e da inflação sem juros punitivos para o giro das empresas e o consumo.
O drama do setor automotivo
Lula está procurando o discurso que pautará os seus passos iniciais e as diretrizes da dupla ou trio de ministros da área econômica. Ele sabe que entre o convencionalismo fiscalista exemplificado pelo teto de gasto orçamentário e o desenvolvimentismo da velha-guarda petista o mundo andou, política industrial virou bandeira da nova direita nos EUA, a economia digital se tornou determinante e o setor privado mais dinâmico aguarda sinais para seguir em frente ou desistir do Brasil.
Considere: as gigantes do setor automotivo, de caminhões e de ônibus, têm investimentos confirmados de quase US$ 1,2 trilhão até 2030 para produzir veículos 100% elétricos, entre baterias, linhas de montagem e matérias-primas. A quantia é mais que o dobro da estimativa de um ano atrás, segundo monitoramento regular da Agência Reuters.
As montadoras, todas com bases no Brasil, vão despejar 54 milhões de veículos a bateria em 2030, mais de 50% da produção mundial. Estamos inseridos neste circuito? Não. O laissez faire guedista tratou como questão privada o que mereceu grau de atenção máxima nos países com setor automotivo relevante. É a nossa cadeia produtiva mais extensa, com 22% do PIB industrial, 4% do PIB total, gerando mais de 1 milhão de empregos, afora as oficinas e postos de serviços. Tais temas é que exigem atenção, não o que querem os financistas e assanha a imprensa.