Jornal Estado de Minas

BRASIL S/A

Gente birrenta

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis


Se a política econômica do novo governo ainda não é sabida, só pode ser bullying o pessoal do mercado financeiro ir ao noticiário acusar, como jograis, a “política desenvolvimentista fracassada”, que “o PT não aprendeu nada” com o fracasso da Dilma, e outras frases de efeito. Isso é birra de gente mal-acostumada. E jogada ensaiada.



Ausentes da imprensa desde 2016, de repente surgem notícias de que a nota de risco de crédito do país pode ser rebaixada pelas agências de rating devido à PEC da Transição. Quer dizer que estava tudo ok até a eleição de Lula? O disparate até virou meme no Twitter: “Oi, sumida!”.

A PEC, aprovada no Senado e tramitando na Câmara, eleva o teto de gasto da Lei Orçamentária para 2023 em R$ 145 bilhões e libera R$ 23 bilhões para investimentos com receitas extraordinárias.

O meme faz sentido, pois agências como Standard & Poor’s e Moody’s não foram vistas alertando os fiscais do saldo fiscal e da dívida pública quando a dupla Bolsonaro e Guedes furou o teto nos últimos quatro anos em R$ 795 bilhões, deu beiço nos precatórios, lançou a PEC da compra de votos (que elevou para R$ 600 até dezembro o bônus do Auxílio Brasil, codinome do Bolsa-Família), e reduziu o preço dos combustíveis, tungando o ICMS dos estados e municípios etc.

Uma economista do mercado mostrou inquietação com o superávit da LOA de 2022 virar déficit acima de 2% do PIB em 2023 por causa da PEC do Lula. Inocência? O superávit veio do represamento de despesas obrigatórias e, sobretudo, do efeito da inflação sobre a arrecadação tributária. O último que recorreu a pedaladas contábeis foi impichado. Faltou-lhe PGR, MPF, mercado e imprensa distraídos.



As contas do governo colapsaram em dezembro, afetando aposentadorias do INSS, universidades federais estão sem caixa, a PF adiou a emissão de passaportes, falta orçamento para vacinas, diligências policiais na Amazônia etc. Simular a economia em planilhas de costas para a realidade social explica termos perdido, desde 1980, o status de país industrializado e de renda média. Regredimos ao subdesenvolvimento.

A PEC será aprovada, seja lá em qual tamanho, em primeiro lugar para evitar o shutdown federal como agora. Em segundo, para termos governo e Parlamento operantes e sociedade minimamente estável.

Os gastos com transferência de renda pelo Bolsa-Família e com algumas obras de infraestrutura não formam um plano econômico. É só o básico, apesar da crítica dos ortodoxos na economia. Esse plano virá depois da posse, com sintonia entre as pastas da economia, das quais só Fernando Haddad, na Fazenda, foi anunciado. Quanto mais defensivo e reativo for o novo plano, menores os seus resultados.

Renda básica transformadora

Um plano inovador, por exemplo, buscaria transformar o que é considerado como gasto na veia, o Bolsa-Família, em plataforma de renovação industrial, que tem possibilidade de ser ainda mais significativa com outro projeto, sem envolver recursos públicos, que trata do perdão e renegociação das dívidas das famílias. O programa já foi apresentado ao novo governo e tem a simpatia dos bancos.



Os inadimplentes negativados são da ordem de 67 milhões de brasileiros, 42% da população adulta. Ao contrário da percepção corrente, água, luz, telefonia e gás representam 29% das dívidas inadim-   plidas, quase tanto quanto com bancos e cartões. Mais de 71% do total das dívidas pessoais não é com bancos e cartões, é com prestadoras de serviços essenciais de fluxo contínuo, tipo água e luz.

O que dizem tais números? Que milhões estão, na prática, excluídos da economia monetária. A dívida negativada das pessoas com bancos e cartões é de cerca de R$ 99 bilhões, 3,5% da carteira total de crédito da pessoa física, cujo estoque chegava a R$ 2,8 trilhões em abril último. Já a dívida não bancária (contas de luz, água, crediário de lojas etc.) passava de R$ 205 bilhões na mesma data.

Crédito reativado e bônus básico garantido por pelo menos dois anos, o prazo da PEC da Transição, formam uma massa de renda disponível a ser consumida com os chamados bens de salário (comida, sapato, móveis, eletrônicos) capazes de pôr no limite o nível da produção e atrair investimentos de expansão, se acoplados a uma macroeconomia convincente, que também contemple a exportação, com resultado fiscal gerenciável, inflação estável, juros permissíveis, contas externas em ordem. Essa é a agenda que importa, não a fiscalista do mercado.



O poder dos planos criativos

Política industrial é condição essencial para o desenvolvimento sustentado e ponto de partida para o dinamismo das atividades de serviços, que são maiores empregadores em toda economia bem-sucedida. Mas no Brasil, segundo o economista Felipe Augusto Machado, “enfrentamos a maior desindustrialização precoce do mundo, a produtividade relativa está menor e nossa complexidade econômica segue declinando”. Tratá-la com prioridade é compromisso do presidente eleito.

É por isso que Lula recriará o Ministério do Desenvolvimento, envolvendo indústrias, serviços e comércio, com o BNDES e a promoção comercial externa na mesma estrutura. Tanto quanto na Fazenda, planos criativos farão a diferença.

Pegue-se a reforma tributária, peça necessária para revitalizar a indústria e o dinamismo econômico dos anos 1930 a 1980, quando fomos o terceiro país com maior taxa de crescimento da renda per capita no mundo. O motor de impulso era indústria e infraestrutura, não a exportação de grãos, que emprega pouco, a carga tributária é baixa (sete vezes menor que a da indústria de transformação) e a difusão econômica é limitada. Reforma tributária por si não é suficiente, sobretudo se não incluir todos os setores e não só aqueles em que a oneração é fácil, como a indústria, o comércio e os assalariados em geral.



A modernização tributária, com a economia e as pessoas no mundo digital, não pode ser analógica. A mudança começa pela integração dos cadastros de CPF e de CNPJ, o que já é possível, passa pela cobrança do tributo no ato da transação, com débitos simultâneos e eventual compensação também em tempo real, e conclui com a eliminação das cédulas de R$ 200, para dificultar a sonegação. A Índia fez isso, concomitantemente à introdução do IVA, com sucesso; na Estônia, é assim.

Como evitar frustrações

O que precisa ser considerado, e caberá ao governo Lula fazê-lo se tiver a compreensão, é que o mundo mudou e não só pela tecnologia. Nas democracias, e os EUA são o maior exemplo, e nas autocracias, como China, não há margem para erros econômicos nem omissões políticas com a sorte da população.

Este ano, saiu uma bateria de livros nos EUA e na Europa de autores alinhados ao conceito do livre mercado, mas dizendo que o neoliberalismo se excedeu e é terminal. Falta coesão sobre o que o substituirá. Supõe-se que será uma versão moderna da gestão macroeconômica keynesiana com o Estado de bem-estar social-democrata. A reabilitação das instituições keynesianas já é a maior bandeira da nova direita não trumpista. A opção será o fascismo, segundo seus textos.



Dias atrás, num discurso dirigido ao seu Partido Republicano, o senador Marco Rubio, da Flórida, expoente do conservadorismo americano, declarou que o futuro da legenda “não está com os mercados livres, está com a classe trabalhadora”.

A motivação talvez esteja na nota enviada aos clientes na sexta-feira pelo inglês Paul Donovan, economista-chefe do UBS: “A quarta revolução industrial mudará a sociedade. A mudança estrutural tende a aumentar a desigualdade. Isso naturalmente encoraja a economia do bode expiatório (culpar os outros por seu declínio relativo) e a política preconceituosa. O preconceito é economicamente destrutivo. Essas tendências não devem ser ignoradas”.

Bolsonaro foi aqui a sequela dessas tendências globais. Como diz Donovan, “as redes sociais estão mudando a política”. A ideologia econômica libertária à la Friedman e Hayek, como defende parte do mercado financeiro no Brasil, em crescente desacordo com as casas bancárias nos EUA, está em baixa, ao ignorar a sorte das pessoas comuns. Este é o desafio de Lula: atender a quem o elegeu sem fraturar o consenso obsoleto do mercado financeiro. Inovar e negociar outro consenso empresarial é o caminho de menor risco. Começa com visão.