A discussão acalorada sobre os juros altos no Brasil, atiçada pelo presidente Lula ao cobrar as razões de o Banco Central anunciar que a taxa básica real recorde no mundo continuaria assim até 2024, esfriou graças à turma do deixa-disso, capitaneada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Lula cedeu, mas não à força dos argumentos, e, sim, pelo receio de recrudescer sem dispor de uma sólida base parlamentar, não encontrar no empresariado disposição de comprar essa briga e, com até maior peso, faltar-lhe um programa alternativo ao que está aí.
Tudo decidido e nada resolvido, como febre tratada com banho frio.
O debate sobre as razões da elevadíssima taxa Selic definida pelo BC é correto no mérito. Errado foi o caminho que ele tomou. Lula abriu a discussão criticando a autonomia operacional do BC, aprovada em lei em fevereiro de 2021, e a meta de inflação, que seria muito baixa.
No frigir dos ovos, ele não tem votos no Congresso para aprovar algo em desacordo com os interesses dos presidentes da Câmara e do Senado e de seus aliados nos partidos. E elevar a meta de inflação (de 3,25% este ano e 3% em 2024), embora factível, pois decisão não do BC, mas do governo representado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), não implica queda imediata da Selic – desde agosto em 13,75%, contra 5,7% da inflação medida pelo IPCA no acumulado em 12 meses até janeiro.
A discussão realmente necessária não conflita com a autonomia do BC, não depende de votação no Congresso e é o que mais precisa a miríade de empresas de todos os portes sufocadas pela venenosa combinação de juros altos e aperto de crédito agravado pela crise das Americanas.
Peguemos a Selic: saiu de 2% ao ano em fevereiro de 2021 para 13,75% em agosto de 2022 e assim vem se mantendo. Mas a inflação em 12 meses no mesmo período subiu de 5,20% até o pico de 12,13% em abril do ano passado e depois passou a desinflar, chegando em janeiro a 5,77%.
Chama atenção o enorme diferencial entre a taxa de juro de um dia, ou overnight, definida pelo BC e a inflação corrente, resultando na maior taxa real (tirando a inflação) do mundo, 7,5%. Precisa ser esse exagero para vergar a inflação? É isso o que Lula quer saber.
Fazendo mais com menos juro
A volta da inflação se deu em escala global, refletindo a quebra das cadeias de produção no mundo devido à parada de fábricas e lockdowns, especialmente na China, como resposta à pandemia, que se acumulou com a invasão da Ucrânia pela Rússia, impactando os preços de grãos, gás e petróleo. Pandemia e o Napoleão russo não pouparam nenhum país.
A prioridade global tem sido ditada pelo alta de juros pelos bancos centrais para desacelerar a atividade econômica via encarecimento do crédito, gerando contração de demanda, redução de emprego, portanto, da renda disponível para consumo e, no limite, alguma recessão. Esse é o encadeamento da cartilha monetária para o estresse da inflação.
Os bancos centrais tentam trazer a inflação para a meta estipulada, em geral de 2% ao ano nas economias desenvolvidas, com o menor ônus para a atividade produtiva e o bem-estar. Assim tem sido até agora.
Na Inglaterra, um dos países mais espancados pela inflação, agravada pela sequela do Brexit sobre o dinamismo econômico, o índice de preço ao consumidor vem recuando do pico de 11,1% em outubro, o maior nível em 41 anos, para 10,5% em dezembro e 10,1% em janeiro. A expectativa do Banco da Inglaterra é que caia para 4% no fim do ano. E com qual taxa equivalente à nossa Selic? Está em 4%, a maior em 14 anos, pode ir até 5%, bem abaixo da inflação, mas suficiente para desinchá-la.
Nos EUA, a gritaria contra o arrocho monetário do Fed turva a visão de que a taxa do overnight poderá atingir 5% a 5,5%, estando hoje em 4,5% a 4,75%, bem abaixo da inflação de 6,4% em janeiro, e parar de subir. Bastaria este nível de juros para a inflação fechar 2023 com alta de 2,5%, segundo o FMI, versus 6,7% em 2022.
Somos todos ouvidos
No resto do mundo, afora Argentina, Venezuela e Turquia, todos com inflação galopante por razões próprias, os índices de preços têm viés desinflacionário e juro negativo. Leia-se: abaixo da inflação.
Só em casos excepcionais os bancos centrais elevam a taxa de juro básica acima da inflação, e a mantém abaixo do crescimento nominal do PIB para cumprir o mandato dual de buscar estabilidade de preços com nível máximo de emprego. Não é o que acontece conosco.
Os apóstolos da infalibilidade do Banco Central desfiam uma penca de razões para tentar justificar a excepcionalidade de a Selic correr sempre acima da inflação, e bota “acima” nos últimos meses.
A alegação básica é de que haveria risco fiscal. Qual, se a dívida líquida, subtraindo as reservas de divisas, portanto, ativo do país, é pouco acima de 50% do PIB, não de 73%, no conceito de dívida bruta? Se a déficit primário das contas públicas, que exclui os juros, está projetado entre 1,1% e 1,3% do PIB no biênio 2023-24? Terrorismo?
Falam também que nosso BC adota o índice cheio como meta e não a sua variante expurgada dos preços mais voláteis de comida e energia, como fazem Fed, BCE, BoE etc. Criticam a indexação. Ok, tudo é procedente. Então, cabe ao BC de Roberto Campos Neto e ao Ministério da Fazenda de Fernando Haddad dizer a Lula, e a nós, o que estão fazendo para corrigir tais distorções, e elas são muitas. Somos todos ouvidos.
Coordenação de emergências
O resumo é que há um estudo de alto nível a fazer sobre os juros. E o debate está interditado, impedindo por razões não muito claras para a maioria o desenvolvimento à larga do país. É grave, sobretudo hoje.
É sabido que muitas empresas saudáveis agonizam pelos juros e pelo aperto de crédito, sem que haja uma ação coordenada para superar um aperto nocivo à paz social. Assim se fez em 2009, quando no rastro da grande crise de 2008 meia centena dos maiores grupos nacionais foi à breca e uma corajosa e silenciosa força tarefa de bancos privados e estatais renegociou dívidas na casa de bilhões de reais, sem o aporte de dinheiros públicos. É função do governo coordenar emergências.
No fim, ficou do bate-boca sobre os juros a impressão de que a parte financista agiu para preservar o BC e isolar o presidente, mostrado ora como populista, ora como ressentido, devendo caber aos que lhe são próximos moderar os seus ímpetos. E como ficamos? Vai uma dica.
A economia, que já representou 3,2% do PIB mundial, deve ter chegado em 2022 com menos de 2%. Se tivesse mantida a fatia do PIB global de 1980, seu porte atual equivaleria a cerca de US$ 3 trilhões, não US$ 1,9 trilhão como previsto para 2022. A renda per capita seria próxima à de Portugal, US$ 22.500, não de US$ 8.900.
Sem tais metas, seguiremos reféns de “excesso” de juros, dependente de commodities e da China e estagnados como nação. Queremos isso?