Bolsa abaixo de 100 mil pontos no terceiro mês de um governo eleito com a expectativa de elevá-la a 130 mil em seu primeiro semestre não é normal. Como anormal também tem sido a agressiva campanha sobre a ameaça de insolvência do Tesouro Nacional para justificar a taxa de juro do overnight do Banco Central de 13,75% ao ano - recorde mundial em sua conta real, abatida a inflação que supõe combater, funcionando como laxante dos lucros, dos empregos e da sanidade do país.
Não faltou ao presidente Lula quem lhe indicasse o cenário provável que iria encontrar depois da economia pilotada no último ano e meio com o fim tão apenas de reeleger Jair Bolsonaro, sob o olhar cúmplice dos mesmos críticos do mercado financeiro que hoje cobram rigor fiscal contra o suposto risco de destrambelhamento do déficit orçamentário e sua influência sobre a dívida pública.
Já era assim no ano passado, disfarçado por um superávit obtido com represamento de despesas essenciais (o que explica a desmontagem de órgãos tipo Funai, Incra, das universidades federais, das áreas de saúde, defesa e cultura), com a tungada dos precatórios e a gestão da Petrobras enviesada para entregar lucros abusivos distribuídos sob a forma de dividendos ao Tesouro e aos felizardos acionistas privados.
Cabia ao governo explicitar de forma didática e ampla a situação que encontrou já nos primeiros dias de janeiro para contrapor à narrativa do risco fiscal, desenhada pela imagem do “abismo” e do “precipício”. O risco de cair no buraco existe se a economia seguir com crescimento estagnado, especialmente a indústria de manufatura, mas não por causa da retomada dos investimentos públicos, que ainda é só intenção.
Foi mal explicada também a necessidade da chamada PEC da Transição, com a qual o Congresso autorizou o governo a realizar despesas acima do teto constitucional de gastos este ano. Seria aprovada com Lula ou com Bolsonaro, variando a ênfase – mais social e investidora com Lula e menos ampla com Bolsonaro, cuja promessa eleitoral também previa a extensão dos R$ 600 às famílias do então Auxílio Brasil.
Mas não se equivoquem: o problema não é de comunicação. É das opções na montagem da equipe econômica. Houve descuido com o clima hostil do mercado financeiro e do BC, além de com a autonomia do Congresso. Por isso a ideia do reset dessas relações. Ainda há tempo, mas não muito.
Por onde recomeçar
Por onde recomeçar, considerando-se a má vontade dos financistas, os minuetos do presidente da Câmara, Arthur Lira, para seguir como foi no governo Bolsonaro virtual primeiro-ministro, e a falta de maioria parlamentar na Câmara e no Senado? E como gerenciar as vaidades, que são latentes no comportamento um tanto imaturo do presidente do BC?
A cada caso, um tratamento específico. Com o BC, o campo a trabalhar é a retaguarda com a qual ele opera a política monetária, o que põe em destaque os bancos, com os traders de papéis como coadjuvantes (e não como pop stars, conforme o status que lhe confere a imprensa).
Cabe questionar, objetivamente falando, as razões do dissenso entre o Banco Central de Roberto Campos Neto, cujos comunicados depois das eleições sugeriam a distensão da taxa Selic a partir deste trimestre, e o governo. Mas não é o BC que Lula deve cobrar. É de quem corrobora o impasse, o que inclui sua equipe econômica e mesmo empresários que pedem menos juros, mas criticam o governo por tal situação.
O governo deveria destacar a dívida líquida como a medida relevante para o monitoramento das contas públicas. É ela e não a dívida bruta a medida comparável com outros países, pois sem particularidades como das operações compromissadas em vez de depósitos da banca no BC (que não entram na conta da dívida). No conceito mais estrito, a dívida líquida é de 57% do PIB, contra 73% na medida bruta. Estranho é o próprio agente público bancar a falácia do abismo fiscal, portanto.
A Selic assombração
Tirando o caixa do BC e Tesouro, chega-se a menos de 50% de dívida líquida sobre o PIB. Incluindo participações em companhias estatais, que é uma das contas da OCDE, a dívida líquida seria da ordem de 45%.
Não é seu tamanho, nem o déficit orçamentário, estimado este ano de 1,1% a 1,3% do PIB, o que preocupa. É o juro fixado pelo BC para pôr a inflação no cabresto, implicando sequelas como a oneração do custeio da dívida do Tesouro. Em 12 meses até janeiro, o país pagou R$ 621 bilhões (6,26% do PIB) de juros. Um ano antes pagou menos mas ainda uma enormidade: R$ 425 bilhões (4,7% do PIB).
Assustemo-nos com este dado: 1 ponto de percentagem da Selic implica mais R$ 40 bilhões no estoque da dívida líquida. É um custo desmedido para convergir a inflação para a meta de 3,25% este ano e 3% em 2024.
Cabe a pergunta repetida por Lula a seus interlocutores: a inflação, que rodou a 10% em 12 meses e chegou no metro do IPCA-15 de março a 5,36%, com disseminação menor e distensão dos preços de alimentos e de serviços, só poderia perder ímpeto com a Selic mata-leão de 13,75% ao ano? O mesmo resultado não poderia ter sido obtido com taxa muito menor? Se o BC exagerou ao trazer a Selic a 2% em 2020, não estaria, outra vez, exagerando ao esticá-la a quase 14% e prolongar a agonia?
Sem temer adversários
Lula precisa refletir sobre o momento do governo. Sem indicativos de direcionamento da macroeconomia, começando pelo hoje inescapável novo regime fiscal, corre risco de perder a direção do processo para o Congresso “empoderado”. Mas nem tanto lá, conforme o comunicado do BC – que falou em continuidade da Selic, podendo até subi-la -, nem como está, depois que a área econômica encampou a agenda fiscalista.
A pauta da ortodoxia econômica é tomada pelo BC como condição sine qua non antecedente para relaxar a Selic, e quem contrariá-la será visto como inconsequente, voluntarista e populista. Parece intuitivo que resta ao governo forçar a mudança do mando do jogo jogado há mais de década no campo do adversário, com a torcida inflamada do segmento da imprensa influenciada pelo fundamentalismo de mercado.
Talvez lhe facilite o trabalho convidar o setor privado interessado mais nas atividades operacionais que nos ganhos financeiros a assumir tal processo, construindo inclusive um pacto com seus representantes no Congresso - ou seja, a centro direita, ou centrão, no entorno de Arthur Lira, na Câmara, e Rodrigo Pacheco, no Senado. Não dá é ralhar em público e nada acontecer. Ou reforma o ministério.
Novidade das Americanas
A solução da crise das Lojas Americanas está se delineando, embora ainda haja muita conversa antes que seus acionistas de referência e os bancos credores cheguem a um consenso. A novidade é que a fraude sobre a qual não há mais discussão parece ter contado com omissão de alguns bancos, ao ignorar a contabilização da dívida bancária lançada como crédito a fornecedor. Essa pendenga dará a dimensão do que seus acionistas, também vítimas da fraude praticada pela antiga gestão, vão aportar vis-à-vis o desconto e conversão da dívida pelos bancos.