Jornal Estado de Minas

Um raio de luz


A decadência de Jair Bolsonaro e dos militares de alto escalão que se enlamearam com ele, depois de preparar a área para a ascensão da direita tosca e radical que existia latente em todos os desvãos sociais, se está dando pelo que mais os uniam como vestais patriotas: pela corrupção que acusam os rivais, flagrada no contrabando de joias dadas por governos estrangeiros à pessoa jurídica do chefe do Estado, não ao cidadão presidente, pertencentes, portanto, à nação.





O caráter fuinha que por quatro anos se apossou da gestão estatal e das políticas públicas se perdeu por patranhas, mas já está por oito anos inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral por realizar evento político com embaixadores num palácio federal antes da eleição.

É possível que seja denunciado por apropriação indébita e lavagem de dinheiro pelo seu então ajudante de ordens, o tenente-coronel Mauro Cid, da ativa do Exército. Também é investigado pela atuação medonha durante a pandemia de COVID, que vitimou mais de 700 mil brasileiros.

E é personagem chave dos crimes investigados de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, no ensaio de golpe em 8 de janeiro, com agravantes de dano qualificado, associação criminosa, destruição e deterioração de bens públicos, entre outros tipos penais.





O ocaso de Bolsonaro não extingue o movimento radical que por muito pouco não o reelegeu, parte por estar enraizado na sociedade antes de sua eleição em 2018, faltava só quem o franqueasse pelo comportamento desabrido, pela linguagem chula e pelos preconceitos mais primitivos. E parte pelo sentimento conservador majoritário no eleitorado, embora sem a perversidade moral da extrema-direita.

Sem ele, outro surgirá, e não faltam candidatos a sucedê-lo, talvez menos radical, mas não necessariamente como representante da direita moderna com visão social e progressista, capaz de conciliar a livre iniciativa empresarial com o Estado entendido como parte da solução e não do problema, como o vêem os fundamentalistas de mercado.

Esse é o fundamento econômico do conservadorismo, contrapondo-se ao viés intervencionista do Estado concebido pela esquerda que não se renovou. A linha do meio entre tais opostos é o novo a ser inventado.





O que degenerou a política


A política se degenera quando grupos de interesse abastardam o meio da representação popular pelo voto para manter a engrenagem do poder, indiferentes aos compromissos assumidos com quem os elegeu.

Dá-se, por exemplo, quando no sistema presidencialista como o nosso o governante busca formar a maioria parlamentar não obtida pelo seu partido para, em tese, aprovar na Câmara e no Senado os seus projetos por meio do aliciamento pecuniário em vez da aliança programática.

Vicia-se o sistema democrático eleitoral quando a representação das vontades sociais e linhas programáticas se fragmenta entre dezenas de partidos, onerando a formação de maiorias mesmo que só para aprovar o que se faz necessário. Exemplo: a lei orçamentária anual, a reforma tributária, o escrutínio regular de cada rubrica, um programa consensual de desenvolvimento, e assim por diante.





Torna-se ilegítimo quando tal dispersão se deu por decisão judicial, como o fez o STF, em 2006, ao derrubar lei do Congresso que impunha limite mínimo de votos válidos para um partido receber verbas fiscais e ter representação legislativa. A chamada cláusula de barreira foi restaurada, mas é mais fraca que a vetada pela extravagância do STF.

Mais: ainda se permite que funcionem diretórios regionais de partido com direção provisória. É o que faz partidos terem dono, ou seja, a maioria dos atuais 23 com deputado federal eleito. O PT é dos poucos partidos realmente orgânicos. O PSDB é ainda quase isso, já a centro-direita e centro-esquerda são como associações de compadres, vivendo à custa de nacos bilionários dos Fundos Partidário e Eleitoral.

Transformações para 2026

Desde o finado PFL, nascido da Arena, o partido do regime militar no sistema bipartidário imposto pela ditadura, com a oposição consentida alocada no velho MDB, a centro-direita perdeu identidade.





Fundado em 1980, o PT sempre buscou depender de mensalidades de seus associados, enquanto a autossuficiência foi descartada pelos outros. Mas o fato é que da esquerda à direita ninguém renuncia aos dinheiros do Fundo Partidário. O Novo recusava, mas já cedeu e virou mais um na multidão. Então, com as raras exceções à esquerda e nomes isolados no centro, a política virou business e meio de vida de alguns finórios.

Reformar tudo isso é mais prioritário que discutir urna eletrônica, como fez Bolsonaro, que passou por nove partidos até chegar ao PL, que já foi da base de Lula e de Dilma e hoje, com 99 deputados, é o pivô parlamentar da extrema-direita. Mas tal discussão não será feita nesta legislatura, já que não interessa aos partidos.

Talvez em 2026, como parte da discussão eleitoral, mas, ainda assim, se vier de fora para dentro da política, inserida numa plataforma de transformação real, começando por um modelo macroeconômico voltado a priorizar o crescimento econômico, o investimento em tecnologia, a geração de renda decente para consumar o mercado de consumo de massa que nunca tivemos, com as dinâmicas ambiental e social contempladas.





A verdade é que se o governo de coalizão que elegeu Lula tivesse se voltado a consolidar uma centro-direita e centro-esquerda moderna, a dependência do centrão seria marginal. E o governo estaria voando.

O que excede e o que carece

A análise da cena brasileira deve considerar que se vive no mundo um tempo de transição de modelos econômicos, de dominância tecnológica, de regimes políticos, de hegemonia global - e não há como entender o Brasil à margem dessas contingências.

Há excesso de disjuntiva política no país e carência de opções de formulação econômica depois de quatro décadas de desindustrialização e predominância de prioridade fiscal e monetária minando as energias das atividades produtivas. A obsessão com essas questões pôs em risco a estabilidade institucional e enfraqueceu a gestão do Estado.





Como diz o economista André Lara Resende, autor principal da reforma monetária de 1994 com Pérsio Arida, “o neoliberalismo fiscalista, a tese de que a única missão do Estado é equilibrar suas contas e que caberia à iniciativa privada, ao ‘mercado’, promover o aumento da produtividade e do bem-estar, não deixou espaço para as questões que pareciam ser prioritárias, uma vez controlada a inflação”.

Essa ficha já caiu nos EUA, onde se assiste à volta do investimento induzido por subvenções, implicando a marginalização da ortodoxia dos mercados, e isso com a adesão das grandes empresas e bancos. Sem esse contraponto, a indigestão da China com a excepcional expansão de sua base industrial e de infraestrutura já teria levado a economia global ao impasse tão mal estudado no Brasil.

A política disfuncional reflete tais ansiedades potencializadas pelo curtoprazismo das decisões financeiras e a fragmentação do centro nas disputas partidárias. País sem plano, projeto e planejamento de longo prazo morre na praia, e essa é uma missão essencialmente política.