Imagine que você é um animal no zoológico. Todos os visitantes te observam e tentam decifrar seus pensamentos. Imagine quão constrangedor seria. E se eu te disser que isso ocorre diariamente? Esse olhar zoológico tenta tirar a humanidade de nós, diversidades e minorias. No artigo de estreia já falei um pouco sobre esse assunto e, agora, quero aprofundar essa questão. Então, eu quero começar com uma pergunta: como você olha e trata pessoas que não fazem parte da sua bolha?
Certo dia, um homem me encarou por longos minutos. Sem tirar o olhar de julgamento de cima de mim, esse homem se desequilibrou, caiu e batendo a cabeça em um posto. O desfecho dessa história pode até parecer uma comédia, mas essas situações são bem sérias.
Diante dessas situações, que são frequentes, sempre me pergunto: Como uma pessoa pode dedicar parte do seu tempo para encarar fixamente outra pessoa ao ponto de desumanizá-la e constrangê-la? Esses olhares, que quase sempre vêm acompanhados de piadas e comentários maldosos, são agressivos, invasivos e absurdos.
Mas, para justificar tal atitude, talvez você até conheça pessoas que usam o seguinte argumento: pelo fato de o Arthur ser uma pessoa trans e por seu corpo gerar uma certa “dubiedade”, ele está pedindo por esses olhares e julgamentos na rua, ele merece passar isso.
Quer dizer que quem não faz parte da bolha dessas pessoas, que não tem as mesmas crenças, que não tem a mesma cor, que não se encaixa em um determinado “padrão” pode receber olhares de preconceito e discriminação ou ser tratada como piada?
Esse discurso de ódio não faz sentido algum. O que tem de justo e bom nisso? Com sinceridade, eu até entendo que o diferente chama atenção e atrai olhares. Mas nada justifica encarar fixamente um outro ser humano ao ponto de constrangê-lo.
Lembro de um momento que recebi a indicação do nome de um médico que já possuía experiência no atendimento a pessoas trans na rede privada em Belo Horizonte. Por conta dessa recomendação, acreditei que teria um atendimento humanizado, sem passar por constrangimentos ou micro agressões. Mas, durante boa parte da consulta, esse médico fez piadas sobre a comunidade LGBT+, principalmente sobre mulheres trans.
Expliquei que aquilo não era adequado, que ele estava sendo ofensivo e preconceituoso. O médico percebeu meu incômodo e contou que esse comportamento sempre foi algo “natural”, que fazer piadas ou olhar fixamente para mulheres trans na rua sempre foi algo comum em sua vida e que não fazia por mal.
A conversa se prolongou e o médico lembrou da primeira vez que viu uma mulher trans. Ele tinha entre 5 e 6 anos quando essa mulher passou em frente a sua casa. Todas as pessoas que estavam na rua apontaram o dedo, riram e fizeram comentários maldosos sobre ela.
"Mais do que se colocar no lugar do outro, empatia, como já disse Djamila Ribeiro, filósofa e escritora, é uma construção intelectual. Ou seja, é necessário ter o compromisso na busca por textos, livros e pesquisas que nos aproxime de realidades que não são as nossas"
Essa situação cruel foi uma espécie de chancela na cabeça desse ser que estava em formação. Já ouviu dizer que crianças não nascem preconceituosas, mas, sim, são ensinadas? Esse médico cresceu entendendo que mulheres trans podem ser ridicularizadas, que suas vidas “não passam de entretenimento”.
Como já falei na estreia desta coluna, tanto o racismo, o machismo, o capacitismo, a transfobia, a homofobia e tantos outros preconceitos são problemas sociais e estruturais, ou seja, eles foram alimentados durante séculos. E, por conta disso, infelizmente, esse olhar zoológico e esse tratamento vexatório muitas vezes é naturalizado e passado de geração a geração. Ao passo que nossos corpos e nossa existência não são naturalizados. E, se observar bem, vai perceber que esse comportamento não está tão longe de você.
Quantas vezes, até sem perceber, você encarou fixamente uma pessoa na rua por ela não fazer parte da sua bolha ao ponto de constrangê-la? Já se perguntou por que fez isso ou ainda continuar fazendo? Como você olha para pessoas com deficiência, casais lgbt , indígenas, negros, gays, lésbicas, pessoas trans ou com sotaques diferentes? Como você olha e trata pessoas que exercem a fé em religiões de matriz africana, por exemplo? Ou, ainda, como você olha e trata seus colegas de trabalho que não se encaixam na sua bolha?
Já passou da hora de naturalizar o “diferente”, já passou da hora de humanizar as diversidades.
Mas como é possível dar este passo? Como é possível desconstruir atitudes e comportamentos preconceituosos e discriminatórios que fazem parte de uma estrutura que, há séculos, está sendo alimentada?
Podemos inicialmente realizar o tão falado exercício da empatia e se colocar no lugar do outro. Como você se sentiria passando diariamente por essas situações citadas neste artigo? Provavelmente, se sentiria mal, não é mesmo?
Apesar de esse exercício ajudar, seria ingenuidade da minha parte achar que apenas se colocar no lugar do outro seria suficiente para desconstruir comportamentos tão enraizados. Sendo assim, quero falar de ações que demandam mais de nós.
Você conhece o importante exercício de reconhecer seus privilégios?
Vamos lá: Quando você precisa entrar em uma loja de departamentos você pensa inúmeras vezes que será seguido por um segurança? Ou então evita a todo custo fazer movimentos bruscos dentro da loja, fica longe das prateleiras e não abre bolsas ou sacolas para evitar acusações de roubo?
Quando você sai de casa para resolver um problema do dia a dia ou pegar uma condução, você evita usar bermudas e chinelos para ninguém pensar que você é um ladrão?
Você precisa evitar andar de mãos dadas com a pessoa que você ama por ter medo de sofrer alguma agressão física ou verbal?
Você precisa lutar (e lutar muito) para as pessoas respeitarem seu nome e os seus pronomes?
Você tem medo de ir até uma padaria, por exemplo, e ser agredido ou até morto por ser quem você é?
Talvez nenhuma dessas experiências que relatei acima faz parte da sua bolha, da sua vivência. Mas essas e outras situações infelizmente fazem parte da minha vida e de outros milhões de brasileiros e brasileiras que fazem parte de diversidades e minorias. Sendo assim, passe a olhar para os lados, para outras realidades que não são as suas.
Não é possível combater preconceitos, discriminações, desigualdades sem reconhecer privilégios. No artigo de estreia citei Ricardo Sales, consultor de diversidade: “privilégio não é sobre culpa. É sobre responsabilidade”.
Depois de reconhecer seus privilégios, é hora de entender qual é seu papel nisso tudo. É necessário entender que o racismo não é um problema apenas para comunidade negra e a transfobia não é um problema apenas para a comunidade trans. Ou seja, esses e outros preconceitos são estruturais e sociais, sendo assim, eles também são seus problemas! Afinal, vivemos em sociedade, não é mesmo?
Mas para entender nosso papel e também como contribuir de maneira efetiva é necessário ter comprometimento na busca por informações, conhecimento qualificado e aprofundado!
Você sabe o que é sobre racismo estrutural? Sabe o que é capacitismo? Ou quais são as raízes e as diferentes manifestações do machismo? Me coloco na roda: qual é o meu conhecimento sobre os povos indígenas no Brasil? Por aí vai.
Mais do que se colocar no lugar do outro, empatia, como já disse Djamila Ribeiro, filósofa e escritora, é uma construção intelectual. Ou seja, é necessário ter o compromisso na busca por textos, livros e pesquisas que nos aproxime de realidades que não são as nossas. Ter o compromisso de conferir palestras, vídeos e filmes sobre diversidade e inclusão. Se possível, até integrar grupos de estudos sobre o assunto. É, sobretudo, ter o compromisso e sensibilidade de refletir e agir. Mudar comportamentos, atitudes.
Quando realmente existe compromisso nessa construção intelectual, é possível perceber e reconhecer de forma profunda como nossos preconceitos conscientes e inconscientes impactam a sociedade. Precisamos nos responsabilizar. Gosto muito dessa palavra. Se responsabilize pelas informações e pelo conhecimento que você consome sobre diversidade e inclusão.