Jornal Estado de Minas

RACISMO

Racismo na infância: preconceito interfere na autoestima de crianças negras

Conteúdo para Assinantes

Continue lendo o conteúdo para assinantes do Estado de Minas Digital no seu computador e smartphone.

Estado de Minas Digital

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Experimente 15 dias grátis


Desde muito pequeno, tenho paixão por festa junina. Sempre gostei dos doces, do milho verde, das brincadeiras e também das tradicionais quadrilhas que a escola promovia. Mas foi justamente nesse contexto de festa junina que tenho as primeiras lembranças de rejeição por ser uma pessoa negra. Perdi as contas de vezes que presenciei coleguinhas dizendo, literalmente, que não iriam fazer par comigo na quadrilha por conta da cor da minha pele.



Não demorou muito e  passei a evitar ao máximo me colocar em situações onde precisava interagir socialmente dessa forma. Parei de dançar quadrilha porque sabia o que iria escutar e o quanto isso iria me doer. Mas isso não deveria ser assim. Como qualquer criança, eu só queria me divertir. 

E isso também rolava fora da escola. Lembro de uma vez que estava brincando com uma das minhas irmãs e outras crianças em um palco improvisado, cantando e dançando. Na época, um adolecente que estava do outro lado da rua, em alto e bom som, ridicularizou minha irmã e eu.

Além de rir muito de nós, ele disse que nosso cabelo era ruim, que nossas tranças eram ridículas e que aquilo (se apresentar em um palco), não era para a gente como nós. Lembro que minha irmã estava com um conjuntinho, toda bonita, e, de tristeza, ela agachou e chorou muito. Era pequeno, mas aquilo me doeu na alma. 





Escutar apelidos dolorosos que desumanizam, “piadas, brincadeiras” em relação ao nariz, boca, cabelo e tonalidade da pele. Sem falar das tantas músicas pejorativas e racistas que marcaram nossa infância. Diferentes gerações dentro da comunidade negra já viveram essas e outras tantas situações dolorosas e muitas e muitos  sem a possibilidade de discutir abertamente sobre o assunto. O racismo sempre foi cínico. 

Hoje, tenho 35 anos, mas o racismo ainda é implacável com as crianças negras. Em plena era digital, muitas vezes quando elas publicam conteúdos nas redes sociais são bombardeadas por comentários racistas e até ameaças de morte!

Um comentário, uma palavra, um gesto, um olhar, quando você é criança não consegue dar nomes a situação, mas você sente e entende o recado: por não ter a pele clara e cabelos lisos, você é não é também bem-vindo. E tudo isso tem  um impacto gigantes em nossa autoestima e infelizmente fortalece o sentimento de inferioridade, algo que nos persegue por muitos anos. 

Lembra da “brincadeira” racista que alguns ginastas promoveram contra o ginasta Ginasta  ngelo Assumpção? “Seu celular funciona? É branco! Se não funciona? É preto! Saquinho de supermercado? É branco! O de lixo? É preto!”.



Para algumas pessoas essas palavras são "inofensivas", mas, na realidade, elas  geram um verdadeiro turbilhão de sentimentos depreciativos, de tristeza e sentimento de inadequação na criança negra.

Além disso, onde está a representatividade de crianças negras em propagandas, novelas, séries, revistas, animações e filmes? Agora me diga, como fica a saúde mental dessa criança negra que, desde a  primeira infância, já enfrenta a crueldade e cinismo do racismo? Em muitos casos, ela se olha no espelho e não gosta do que vê. Infelizmente, de  forma inconsciente ou consciente, essa criança passa a  desvalorizar e negar suas tradições, sua identidade, seus traços e costumes.

Além do abalo psicológico e social, o racismo  também prejudica e nega direitos básicos para crianças negras. 

De acordo com um estudo da UNICEF, 32 milhões de crianças e adolescentes brasileiros são afetados de alguma forma pela pobreza. 18 milhões são atingidos pela pobreza monetária, ou seja, não têm renda suficiente para comprar uma cesta básica. As crianças negras registram uma taxa de privação de 58,3%, entre as brancas, essa taxa não passa de 40%. O mesmo vale para a privação extrema, que afeta 23,6% das crianças negras e 12,8% das brancas. 

Além disso, segundo o estudo da UNICEF, no Brasil, 24,8% das crianças e dos adolescentes estão em privação de saneamento. Entre elas 70% são negras.

Segundo o Mapa do Trabalho Infantil, hoje, as crianças pretas representam mais de 62% das vítimas de trabalho infantil no país. No caso do trabalho doméstico, esse índice aumenta para 73,5%, sendo que mais de 90%, são meninas. 





Além disso, de acordo com o índice de vulnerabilidade juvenil à violência, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública/2020, antes de completar 15 anos, uma criança negra tem quase três vezes mais chances de ser morta do que uma criança branca.

As crianças negras são também as mais penalizadas quanto ao acesso à educação, segundo o estudo da UNICEF. Há 545 mil crianças negras de 8 a 17 anos analfabetos, versus 207 mil brancas. Além disso, segundo o IBGE, das 530 mil crianças de 7 a 14 anos que estão fora da escola, 330 mil são negras. 
 
Vale lembrar também que a  educação eurocêntrica nas escolas reforça estereótipos racistas. E que muitos professoras e professores desconhecem a Lei 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio. 





Aproveitando que estamos no mês da criança, podemos intensificar uma discussão:  o que pode ser feito para mudar essa realidade? É necessário criar diferentes políticas públicas para combater o racismo estrutural e também políticas públicas direcionadas para proteger as crianças negras. 

Entre essas ações é importante oferecer informações e conscientização sobre educação antirracista nas escolas. Isso inclui formação, consultorias e mentorias para o corpo docente e a direção das escolas sobre o assunto. 

Além disso, fora dos muros  das escolas, já existem grupos e projetos de iniciativa civil que promovem na prática a educação antirracista e precisam de apoio para seguir em frente com o trabalho. Esses projetos explicam de forma didática o que é racismo estrutural e quais são os prejuízos que nascem dele.



Além disso, essas organizações  também trabalham o sentimento de pertencimento, de autoconhecimento nas crianças negras e também investem em ações culturais e sociais  que fortalecem a autoestima delas. Se você é mãe, pai ou responsável por uma criança negra e deseja conhecer alguns desses projetos, pode me procurar nas redes sociais. Vamos juntes encontrar caminhos para fortalecer a autoestima das nossas crianças negras! 

É extremamente importante que essa criança negra encontre lugares, pessoas e grupos seguros onde ela possa compartilhar as situações dolorosas e também compartilhar informações e conhecimentos sobre sua origem, cultura, sobre seus sonhos, projetos e perspectivas. Além disso, as escolas, projetos da iniciativa civil e também projetos governamentais precisam oferecer  cursos, rodas de conversa, brincadeiras e jogos sobre a temática racial para todas as crianças. 

Vale ressaltar que  muitas famílias ensinam diretamente ou indiretamente suas crianças a serem racistas (crianças não nascem racistas, elas apreendem): as “piadas” racistas no churrasco de família, o comentário racista sobre o cabelo e traços da vizinha negra, as “brincadeiras” sobre a aparência da única pessoa negra da família e por aí vai.

Na infância, por várias vezes fui discriminado na vizinhança por pessoas adultas e era só uma questão de tempo para os seus filhos e filhas replicarem esse comportamento racista comigo e com outros coleguinhas negros. Não existe melhor ensinamento que o exemplo. 





E mais: ao longo dos anos essas manifestações de racismo passam a ser algo “natural” e até inconsciente na vida desse pequeno ser. Ou seja, existe uma grande chance dessa criança se tornar um adulto racista. Então, qual o legado você está deixando para seus filhos e filhas? Um legado que perpetua o racismo? 

E se você presenciar uma criança negra sofrendo racismo? Não fique apenas olhando, haja no mesmo instante:  Seja  uma ilha de acolhimento para essa criança, ofereça carinho e afeto, diga que ela não merecia passar por isso, ressalte a beleza e a inteligência dela e pergunte se ela deseja ter contato com um adulto responsável que seja da confiança dela. E, por favor, neste momento traumático, não tente reduzir a dor e os sentimentos dessa criança, mostre que realmente você está ali, que ela não está só. 

“Arthur e se for uma outra criança que cometeu o ato racista?” como já falei aqui, crianças aprendem a ser racista em casa, então, no lugar de castigar ou gritar com essa criança, é importante explicar para ela porque essa atitude é tão ruim e perigosa. E como essa atitude pode ferir e machucar as pessoas e, claro, é muito importante conversar com os responsáveis por essa criança, explicar a situação e também mostrar a importância de manter esse diálogo aberto sobre raça e racismo dentro de casa. Os responsáveis por essa criança precisam entender seus papéis em tudo isso. 

Além disso, quero destacar o seguinte: Assim que possível, é muito interessante que essa criança negra possa ser auxiliada com atendimento psicológico. Assim que possível e na idade adequada, é muito importante que ela tenha  atendimento com profissionais que levem em consideração situações de racismo e seus impactos para acompanhar essas crianças.

Se você precisa de indicação de profissionais da psicologia para atender seus pequenos com o valor mais acessível, pode me procurar nas redes sociais. Espero muito que as próximas gerações não passem o que nós passamos na infância por conta do racismo e que também elas possam ter acesso a mais recursos para resguardar a autoestima e suas identidades.




audima