A população negra no Brasil é a que mais sofre com assassinatos. Só para você ter uma ideia, a chance de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra. O grupo representa 77% das vítimas. A taxa de homicídios por 100 mil habitantes negros, no país em 2019, foi de 29,2, enquanto a da soma dos amarelos, brancos e indígenas foi de 11,2. Os dados são do Atlas da Violência 2021.
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Mês da consciência negra: crianças negras têm nomeRacismo institucional nas empresas: não basta uma nota de repúdioRacismo institucional nas empresas: não basta uma nota de repúdio Representatividade importaAs violências que pessoas trans enfrentam em ônibus e metrôsInterseccionalidade: pessoas trans negras sofrem violências física e verbalUm dos ganchos para essa série foi o "Mapa da Violência 2013 - Homicídio e Juventude no Brasil", que mostrava que os negros eram vítimas de 71,4% dos assassinatos no país. Esses jovens assassinados em grande parte eram do sexo masculino, negros, com idades entre 14 e 25 anos e periféricos.
Foram quatro reportagens sobre o assunto e, em uma delas, a abordagem era: “os movimentos sociais e especialistas eram unânimes em apontar uma questão latente. É imprescindível reformular a abordagem que a Polícia Militar faz aos jovens negros”.
Na época entrei em contato com a assessoria de imprensa da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), para a corporação dar um parecer sobre o assunto e também tirar algumas dúvidas.
Durante a entrevista, perguntei como a polícia lidava com questões raciais, por exemplo, se havia racismo dentro da corporação ou nas abordagens policiais. Mesmo depois de oito anos não esqueço a resposta que recebi do representante da PMMG: “é uma falácia dizer que existe racismo dentro da corporação ou nas abordagens policiais”.
Essa afirmação é contestada pelo Atlas da Violência publicado em 2019. Segundo o levantamento, oito em cada dez vítimas em intervenções policiais são negras.
Com a ideia de entender melhor como a questão racial é percebida pelos policiais militares em Minas Gerais, o policial e pesquisador da UFMG Paulo Tiego Gomes de Oliveira defendeu a tese "Questões étnico-raciais e a formação do policial militar: um estudo na Academia de Polícia Militar de Minas Gerais".
A defesa foi feita no Programa de Pós-graduação em Educação - Conhecimento e Inclusão Social da UFMG. Paulo Tiago aplicou, de forma online, 240 questionários a policiais dos cursos de Formação de Oficiais, de Habilitação de Oficiais, de Formação de Sargentos e Especial de Sargentos. A ideia era entender como os policiais se representavam do ponto de vista racial e como essa temática poderia ser melhor discutida na corporação.
Segundo o Paulo Tiego Gomes de Oliveira, além da resistência de algumas unidades sobre o assunto, a pesquisa mostrou que a maioria dos policiais não vê prática de racismo no trabalho. Ou seja, o racismo ainda é tabu na Polícia Militar. O estudo mostrou ainda que a temática racial é, de certa forma, tratada nos cursos de formação da Polícia Militar, dentro da disciplina de Direitos Humanos. Mas a carga horária ainda é muito pequena: representa em torno de 1 a 3% do total da grade curricular.
Além disso, segundo o levantamento da Fundação João Pinheiro e do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), pessoas negras têm quatro vezes mais chances de sofrer violência policial do que as brancas durante as abordagens. Foram analisados 3,5 mil boletins de ocorrência com mortos e feridos em intervenções policiais no estado, de 2013 a 2018. Segundo a pesquisa, quase sete em cada dez mortos ou feridos em abordagens da polícia são negros. A maioria são homens com até 29 anos de idade. Cerca de um terço estudou até o ensino fundamental.
Diante de tudo que apresentei até aqui, fica evidente que não é uma falácia dizer que existe racismo dentro das polícias e nas abordagens policiais.
Tanto que até mesmo policiais negros não estão isentos de sofrerem racismo dentro da própria policia. Em janeiro de 2021, durante um passeio em um parque em Barbacena, Minas Gerais, Anderson César da Silva, de 32 anos, e sua filha de 4 anos, viveram momentos de terror. Depois de uma denúncia, Anderson César da Silva, que é um policial militar negro, foi abordado por colegas policiais, que, segundo ele, agiram com truculência e o trataram como um abusador.
Anderson acusa os policiais de tortura e racismo. Ele chegou a ser preso por desacato e agora aguarda o desfecho do caso na Justiça. “O militar chegou, virou para mim e falou: ‘seu preto safado, olha a cor da sua filha, olha a sua cor’. Eu peguei meu celular e comecei a filmar. Ele pegou meu celular e eu tomei um mata-leão e depois desse momento eu não vi mais nada”, conta Anderson.
É extremamente alarmante esses dados e situações. Não é possível que a sociedade brasileira continue ignorando que o racismo estrutural também está presente na segurança pública.
Foram mais de 300 anos de escravidão, naturalizando a violencia fisica, verbal e não verbal contra pessoas negras. E mesmo depois da escravidão essa violencia foi adaptada, mas não desnaturalizada. Ou seja, ainda hoje, falta diálogo aberto e profundo sobre racismo estrutural e institucional dentro das polícias e, por sua vez, falta letramento e preparo nas abordagens.
Essas ausências do Estado em investir na transformação da forma como as polícias lidam com a temática racial tem um custo muito alto: custa vidas!
Nesses últimos dias do Mês da Consciência Negra, quero aproveitar para deixar essa reflexão: até quando o poder público vai ignorar as violências que a comunidade negra enfrentam no país?