Como o Brasil trata corpos negros e transexuais? Posso dizer que de formas muito desumanas. O país segue pelo décimo terceiro ano consecutivo como o lugar mais perigoso para uma pessoa transexual viver. A informação é do projeto Transrespect versus Transphobia Worldwide da ONG Transgender Europe (TGEU).
Segundo o projeto, desde 2008, 4.042 assassinatos de pessoas trans foram registrados no mundo. Sendo que 1.645 ocorreram no Brasil, ou seja, 40% de todos os casos. Ainda segundo a TGEU, em território brasileiro, a transfobia também é potencializada pelo fator raça: travestis e mulheres trans negras correspondem a 78% dos casos.
Em 2020, foram assassinadas 175 pessoas transexuais no Brasil. O dado foi divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). A média é de um assassinato de transexual a cada 48 horas no Brasil.
Em números absolutos, São Paulo foi o estado com mais casos em 2020, com 29 mortes, seguido pelo Ceará, com 22 assassinatos, e a Bahia, com 19. Além disso, em 2020, 71% dos assassinatos aconteceram em espaços públicos e a maioria das pessoas transexuais mortas no ano passado no Brasil eram negras.
Esses dados são extremamente alarmantes! Sobretudo, porque não são números frios, são pessoas, seres humanos com história, origem, identidade, sonhos e planos, que perderam suas vidas por serem quem são.
E, se você observar bem alguns padrões se repetem nesses dados, vai perceber que mais da metade dessas pessoas trans mortas são negras e a maioria desses assassinatos ocorrem em lugares públicos. Esses dados dizem muito como o Brasil lida com corpos negros dissidentes.
A prática da violência física infelizmente ainda é muito presente na vida da população trans negra no país. A forma como a sociedade encara a interseccionalidade (intersecção de identidades sociais) dessas pessoas é mergulhada na transfobia e no racismo, entre outros preconceitos e discriminações.
Algumas pessoas chegam até a dizer: “que pouca vergolha, esse negão vestido de mulher, ele está pedindo para apanhar”. É importante ressaltar que quase sempre os xingamentos e as ofensas contra pessoas trans negras "preparam" caminho para a “naturalização” da agressão física contra essa população. Sem medo, me arrisco a dizer que não existe uma pessoa trans negra no Brasil que não tenha sido alvo de xingamentos ou ameaças por ser quem é.
Só para você ter uma ideia, há algumas semanas a vereadora Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), que é uma mulher trans e negra, foi alvo de um novo ataque transfóbico promovido em plena sessão na Câmara da cidade a vereadora de Niterói: “Durante minha fala, quando apresentava dados sobre a transfobia brasileira, os gritos e xingamentos dos bolsonaristas me interrompiam. Fui chamada de ‘traveco’, ‘viadinho’ e ‘piranha’. Foi muito violento!”, relatou a vereadora.
Vale lembrar que em maio de 2021, Benny precisou sair do país para se proteger devido a ameaças a sua integridade física. Ela ficou cerca de 15 dias acompanhando as sessões plenárias de forma virtual. Uma das ameaças mais graves envolveu um e-mail citando o endereço da vereadora enquanto exigia sua renúncia do cargo e a ameaçava de morte caso não o fizesse.
As violências que se manifestam por meio de xingamentos e ameaças contra pessoas trans é a mesma que coloca por mais de uma década o Brasil no infeliz posto de país que mais mata pessoas trans no mundo!
Faltam políticas públicas exclusivas que efetivamente contemplem as complexidades e demandas da população trans negra no país. Não é possível mudar essa situação sem saber ler os contextos sociais que cercam essas pessoas.
E talvez você que está lendo esse artigo possa pensar: “eu não tenho a prática de ofender ou xingar pessoas trans, muito menos faço ameaças a essas pessoas”. Mas tem algo que também precede as frases abertamente ofensivas: as “piadas” transfóbicas.
O que para algumas pessoas é apenas uma “brincadeira”, algo apenas para “descontrair”, acaba ferindo, magoando, ofendendo e abre caminho para desumanização das nossas vidas e nossos corpos. Ou seja, também abre caminho para ofensas e violência física.
Como já disse, nós também temos história, família, sonhos, deveres, direitos e planos. Sou um homem negro e trans e minha vida não é entretenimento, não é lazer para as pessoas se acharam no direito de fazerem piadas sobre ela.
Um corpo negro e dissidente tem o direito de existir e ocupar os espaços públicos. Nós não queremos apenas sobreviver, nós também temos o direito a ter uma vida digna.