Há alguns dias, a TV Bahia apresentou a história de Sônia Seixas Leal, resgatada em 2021 após trabalhar 54 anos em condições análogas à escravidão. Durante todo esse tempo ela trabalhou em uma residência sem salário, acumulou dívidas feitas pela ex-patroa e também foi vítima de maus-tratos. Ou seja, por mais de 5 décadas, Sônia, que é uma mulher negra, não teve seus direitos desrespeitados e sua saúde mental foi destruída. Tanto que durante entrevista à TV Bahia, ela disse que tem medo de pegar na mão de pessoas brancas.
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Qual é a relação entre os jovens negros e negras e o mercado de trabalho? Não basta realizar uma palestra sobre diversidade, equidade e inclusão Investir em diversidade e inclusão não é caridadePor que o mês do Orgulho LGBTQIA+ é em Junho?Por que lideranças não devem chamar a atenção na frente de toda a empresa? O racismo é perpetuado em atitudes sutis do cotidianoVamos lá. O tráfico negreiro para o Brasil começou por volta de 1535. Ou seja, por mais de 300 anos, pessoas negras foram torturadas, humilhadas, suas famílias foram separadas, seus nomes e sobrenomes foram trocados, sofreram com diferentes doenças e foram assassinadas. Situações desumanas, cruéis e absurdas!
Em 1888, o Brasil foi o último país da América a encerrar oficialmente a escravidão. Mas não foram criadas políticas públicas para atender essa população que por séculos foi escravizada. Sem terras, sem direitos, sem acesso à educação e saúde, sem cidadania. Além disso, no lugar de capacitar essas pessoas pós-abolição, o Brasil acabou adotando políticas de incentivo à imigração de mão de obra da Europa, abandonando a comunidade negra e seus descendentes à própria sorte.
Agora me responda, depois de quase 135 anos do fim da escravidão, qual é o perfil que mais prevale entre as pessoas que são trabalhadores domesticos no Brasil?
Sem dúvida, o sistema escravista também deixou um legado no mercado de trabalho no país.
Só para você ter uma ideia, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, atualmente o total de trabalhadores domésticos é de 5,6 milhões no Brasil. De acordo com o Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese), as mulheres representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho doméstico no país, das quais 65% são negras.
Ainda segundo o Dieese, a maioria das trabalhadoras domésticas está acima dos 40 anos e o rendimento médio mensal delas caiu de R$ 1.016, em 2019, para R$ 930 no ano passado. Além disso, as trabalhadoras sem carteira ganharam 40% a menos do que as com carteira. Já as mulheres negras no serviço doméstico receberam 20% a menos do que as não negras.
Lembra que no início desse texto citei que a ex-patroa tentou justificar porque a trabalhadora Sônia Seixas Leal não recebia salário? “A considerava da família”, “quase uma irmã”.
Essa frase “ela é quase da família” é uma das formas clínicas e perversas que empregadores utilizam para “justificar” o desrespeito aos direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas. Mas não se engane, essas pessoas ultilizam essa frase não só em situações análogas a escravidão, mas também em situações “sutis”, que de sutil não tem nada.
O que se vê mesmo é a lei da convence e manifestações de racismo, por exemplo: “eu pago menos de um salário mínimo, mas já é uma forma de ajudar ela, tadinha, tô fazendo minha parte. Além disso, ela é quase da família", “sei que você foi contratada apenas para cozinhar, mas tem como passar a roupa nesse mês? É só um favor mesmo, diz que sim! Somos família, né?!”.
O que se vê mesmo é a lei da convence e manifestações de racismo, por exemplo: “eu pago menos de um salário mínimo, mas já é uma forma de ajudar ela, tadinha, tô fazendo minha parte. Além disso, ela é quase da família", “sei que você foi contratada apenas para cozinhar, mas tem como passar a roupa nesse mês? É só um favor mesmo, diz que sim! Somos família, né?!”.
Quantas vezes a trabalhadora doméstica é convidada para alguma festa na casa dos patrões? E quando ela é convidada precisa lavar a louça no final da festa, mesmo sendo convidada?
Quantas vezes o nome dessa trabalhadora doméstica é deixado de lado e é substituído pelas expressões: “a menina que trabalha lá em casa”, “minha empregada”?
Quantas vezes as empregadas domésticas são alvos da seguinte frase: “vou esconder melhor esse objeto de valor, todo cuidado é pouco, você sabe como essa gente é, né?!".
Além disso, quantas vezes a trabalhadora doméstica passa por diferentes pressões e cobranças para dormir no trabalho nos finais de semana, para dar uma “ajudinha” a mais para os padrões, e assim, passa não ver sua família, não consegue descansar ou ter tempo para os seus compromissos?
É como se essa trabalhadora doméstica só existisse para “ajudar” e servir os padrões.
Uma vez indo trabalhar de ônibus escutei uma senhora falando o seguinte: “trabalhei em uma casa como cozinheira, mas a patroa me proibiu de comer a mesma comida que eles”.
Essas formas "sutis" de humilhar as trabalhadoras domésticas é uma das manifestações do pacto racista que vem sendo adaptado ao longo dos séculos no Brasil.
Minha mãe, mulher negra, vinda de um vilarejo distante de Diamantina, criou e sustentou todos os filhos e filhas em Belo Horizonte, passando roupa como diarista na casa de diferentes famílias, durante toda a vida. Tenho certeza que ela escutou muitos desaforos, xingamentos, passou por humilhações e privações.
Na infância, durante as férias escolares, quando me levava para o trabalho com ela, cheguei a presenciar algumas dessas situações. Uma vez, já na hora do almoço vi pela fresta da porta da cozinha que os donos da casa se sentaram à mesa e foram servidos pela cozinheira. Nesse momento minha mãe me chamou e pediu para me afastar da porta, ela explicou que o único lugar que poderíamos comer era na cozinha.
Lembro que mesmo muito pequeno, achei estranho ter que comer separado, mas como já estava com fome perguntei se poderia almoçar. Mãe nessa hora disse: “só podemos comer depois que os patrões acabaram de almoçar”. Sem pensar duas vezes respondi na inocência e franqueza da infância: “uai, somos cachorros para só poder comer depois deles?”.
Lembro que mesmo muito pequeno, achei estranho ter que comer separado, mas como já estava com fome perguntei se poderia almoçar. Mãe nessa hora disse: “só podemos comer depois que os patrões acabaram de almoçar”. Sem pensar duas vezes respondi na inocência e franqueza da infância: “uai, somos cachorros para só poder comer depois deles?”.
Em 2012, fui para a cidade do Rio de Janeiro e entrei em uma loja que vendia roupa de mesa e cama. Um dos vendedores estava atendendo uma senhora que tinha o perfil de madame. Ela estava comprando edredons e cobertores que tinham o valor mais elevado. Em um determinado momento ela pediu para ver a toalha mais simples, fina e barata que o vendedor tinha na loja. Ele acabou mostrando outra, de maior qualidade e maciez. Na mesma hora a madame falou: Não, essa não! Quero uma ruim mesmo, é só colocar no quartinho da empregada.
Só para você ter ideia, o quartinho da empregada é um dos legados da escravidão. Para muitos especialistas e estudiosos, é uma forma "sutil" e disfarçada, de dar manutenção a estruturas de poder racistas.
Até mesmo, o termo “doméstica” é algo que precisa ser problematizado: domésticas eram o termo usado para se referir às mulheres negras que trabalhavam dentro da casa das famílias brancas. As pessoas negras eram vistas como animais e por isso precisavam ser domesticados através da tortura.
Vale lembrar que em abril de 2013, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 72, também chamada de PEC das Domésticas. Esse dispositivo, regulamentado em 2015 pela Lei Complementar nº 150, estendeu aos trabalhadores domésticos direitos como jornada semanal de 44 horas, FGTS, multa por dispensa sem justa causa, adicional por trabalho noturno, salário-família, entre outros.
Mas, na prática, o que mudou na vida dessas trabalhadoras?
Em diferentes entrevistas à presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista, falou o seguinte: "Não somos e não queremos ser. Nós temos a nossa família. O que queremos é que nossos direitos sejam respeitados" (Uol).