Em 2019 entrevistei uma mulher negra transexual, de 27 anos. Ela contou que, ao longo da vida, foi agredida várias vezes, verbal e fisicamente. Chegou a ficar semanas ausente da escola e, depois de repetir algumas vezes o primeiro ano do ensino médio, decidiu se formar pela Educação de Jovens e Adultos (EJA). Foi a primeira de cinco irmãos a obter o diploma. Na época ela trabalhava às vezes como faxineira, noutras, acompanhava pessoas em hospitais ou cuidava de idosos. Mas nunca teve emprego com carteira assinada.
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Por que empresas têm dificuldades em contratar minorias?Falta de representantes políticos prejudica políticas para pessoas transA demora na fila do SUS para cirurgia de redesignação sexualViolência contra pessoas trans ainda é realidade no BrasilVocê já deixou de fazer algo por ser uma pessoa negra? Homens trans e assistência ginecológica: medo, dor e constrangimentoAi eu pergunto, como fica a autoestima, como fica a saúde mental de uma pessoa que frequentemente passo por isso por ser quem é? Com certeza em frangalhos.
É importante ressaltar que alguns fatores estruturais corroboram ainda mais para a falta de acesso ao mercado de trabalho para essa população. Da forma como a educação brasileira foi construída, um corpo que é dissidente não pode ocupar um espaço educativo. Quem ousa tentar é perseguido, humilhado, feito de chacota e, em muitos casos, até agredido. E isso tudo resulta em um alto índice de evasão escolar entre pessoas trans.
Só para você ter uma ideia, de acordo com estudo da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), cerca de 82% da população trans sofre com evasão escolar. Segundo levantamento do Projeto Arco-Íris, iniciativa da ONG AfroReggae, apenas 0,02% cursam o ensino superior, 72% não possuem o ensino médio e 56% não concluíram.
Segundo o Mapeamento das Pessoas Trans, realizado no município de São Paulo, 57% das pessoas trans entrevistadas não possuem formação técnica ou específica para a ocupação de determinados cargos no mercado de trabalho. E sobre isso, o levantamento faz uma importante análise: “O acesso aos cursos profissionalizantes depende prioritariamente da conclusão do ensino médio, o que não inclui boa parte dos entrevistados.
Além disso, a posse de cursos, diplomas universitários e outras certificações, apesar de ser um requisito importante, não garante à população trans o ingresso no mercado de trabalho, nem a obtenção de um emprego na área em que se especializaram uma vez que permanecem as barreiras da invisibilidade e do preconceito do mercado de trabalho em relação a esse segmento social”.
Só para você ter uma ideia, uma pesquisa da Fapesp, de 2020, feita com 528 transexuais de sete cidades do estado de São Paulo, por exemplo, indicou que apenas 13,9% das mulheres trans e travestis tinham emprego formal. Já entre os homens trans, o percentual foi um pouco maior, totalizando 59,4%
Diante de tudo isso, é necessário naturalizar os corpos e as vivências trans no mercado de trabalho. Mas isso não acontece sem ações concretas. É necessário humanizar de fato os processos para contratação e permanência da população trans e travesti no mundo corporativo.
Um dos caminhos é a criação de políticas públicas e programas que visem a segurança alimentar (como investir na vida profissional quando você não tem o que comer?), um ambiente educacional mais acolhedor e seguro e que visam também a capacitação profissional da comunidade trans e travesti. Mas o que os governos federal, estadual e municipal têm feito sobre o assunto? Qual é a colaboração das empresas nesse sentido?
O poder público precisa se responsabilizar por isso e o universo comparativo também precisa investir nesse processo. Humanizar a contratação de pessoas trans e travestis começa muito antes da contratação de fato.